A Tradição e o Espírito Americano
Sorvi o notável texto do Rafael sobre
“Os Carlistas na Guerra de Agressão Ianque”. Um artigo fundamental não só pelo conteúdo histórico, mas pela conexão que permite estabelecer entre a problemática política e a problemática religiosa.
Há enormes pontos de interesse no texto, tanto no que respeita à ideia de Ordem Americana, ideia profundamente duvidosa, como à possibilidade de um Protestantismo que funde uma tradição. Existe também a necessidade de compreender qual o Poder verdadeiro na estrutura moral americana do trinómio Atenas, Jerusalém, Roma, para compreender a diferença entre
Lembro-me de, há cerca de um ano, o Rafael ter questionado a possibilidade de um conservadorismo tradicionalista nos EUA. O meu cepticismo a tal empresa mantém-se, não porque não existam cada vez mais tradicionalistas de qualidade no pensamento americano, mas porque o sentimento moral americano (uma certa tradição popular) me parece estar completamente obliterado.
O momento fundacional americano é um momento particularmente fértil em contradições. O que sucede habitualmente nestes momentos é o estabelecimento de um Direito bastante geral e proclamatório, de modo a que abarque maior número de sensibilidades políticas. O que sucede com a Declaração de Independência é precisamente isso. Um conjunto de asserções quase auto-evidentes, omissas sobre o verdadeiro significado de “Life, Liberty and the pursuit of Happiness”.
É por essa razão que vivemos nos Estados Unidos um período pré-revolucionário.
É tão inovador constitucionalmente o projecto de inserir nas Leis Fundamentais Americanas normas de cariz religioso, como a dignidade dos nascituros ou o reconhecimento apenas do casamento heterossexual. É tão revolucionário quanto qualquer norma constitucional de discriminação positiva ou lei que favoreça a homossexualidade...
A lei fundamental, exceptuando em matérias de funcionalidade, nunca apresentou uma resposta moral para qualquer assunto. Isso sucede porque tem no seu âmago uma dupla vertente. Uma vertente estruturante que é liberal (em sentido europeu), defensora do indivíduo e das suas liberdades face ao todo social, donde provém uma concepção realmente atomística da sociedade e que está consubstanciada nas posições individualistas da Constituição. A outra vertente, mais comunitária e moral, defende uma posição real sobre as matérias da vida da comunidade, uma reflexão sobre o “bem-comum”, não um conjunto de garantias para os indivíduos, mas a forma como se podem relacionar entre eles. Esta concepção encontra-se sobretudo no Poder Judicial americano, sob a figura da interpretação jurídica e jurisprudencial
Essa percepção moral social continha os resquícios de ordem do Velho Mundo, elemento que permitia a existência de comunidades (unidas frequentemente pelas congregações protestantes) de partilha de valores e a existência de virtudes éticas e o equilíbrio de um liberalismo atomizador.
Essa moralidade social (que num país de contrastes como os Estados Unidos só poderia sobreviver através de um sistema descentralizador) está moribunda, vítima do jeffersonianismo, wilsonianismo e demais doutrinas afrancesadas e progressistas que infectam o sentir moral americano. Já não há mentalidade cristã a enformar a ordem americana. O espírito constitucional tomou as mentes...
Tal facto deve-se essencialmente à própria fragilidade da(s) moralidade(s) americana(s), essencialmente devido ao seu protestantismo. Todo o protestantismo é um “nihilismo a prazo”, porque se funda na crença de uma religião directa com Deus. Quer no caso das seitas gnósticas-milenaristas, que acreditavam ser individualmente ungidas por Deus, não podendo por isso incorrer em erro moral, quer no seu sucedâneo, o puritanismo, que punha fé absoluta na sua compreensão da Revelação, querendo transplantar o Céu para a Terra, todas estas posições conduzem a uma relação individual com Deus que termina sempre no momento em que o Homem cria o seu próprio Deus.
Esta relação representa a subordinação (louca) do Cosmos ao Eu e quem nela acreditar far-me-á o favor de saltar pela janela mais próxima para ver se a gravidade é um conceito subjectivo.
A apologia da arbitrariedade individual na apreciação do Bem resulta numa apologia da liberdade contra todo o tipo de harmonia que permite a vida em comum, o que resulta na, apenas aparentemente estranha, aliança entre direita-religiosa protestante e o imperialismo democrático neo-jacobino, sob o nome da Liberdade de expressão universal.
Estranha ideologia que faz apelo, não à verdade de que diz ser portadora, mas a todas as perspectivas individuais. Burke notou esta crença numa verdade panteísta no espírito dos “dissenters” do seu tempo.
O surgimento de uma moralidade libertária, relativista e individualista, em oposição ao sentimento religioso protestante, (incipiente e incapaz de encontrar qualquer tipo de permanência) que se consubstancia no desprezo pela esfera individual do próximo, é o mais grave abalo ao periclitante equilíbrio da moralidade americana e ao sentimento de comunidade (que Tocqueville tão bem descreveu) que foi guia da força americana do passado.
Sem os resquícios do velho mundo, a virtude e a justiça, no sentimento americano, não há mais limitações à vontade do povo americano e às suas “boas intenções” de redenção mundial...
Daí à purificação pelo fogo...
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