Manual de Fuga da Pós-Modernidade (III)
Marca evidente da idade pós-moderna (à falta de melhor termo para descrever a idade relativista em que vivem as sociedades ocidentais) é a sua forma de conflitualidade social. Esta não se rege por objectivos, fins ou valores morais. Nem sequer por sentimentos de pertença... É claro que os defensores dos programas sociais lucram com este panorama social. E é também evidente que são eles quem incita à destruição, como forma de mostrar a terrível forma como se vive nos banlieues, para depois demonstrar que só a igualdade socialista se pode sobrepôr a essa “injustiça”. A verdade é que não é esse o motivo das revoltas, mas apenas a direcção que lhe é dada pelos que têm algum poder. A Revolta é a conflitualidade pós-moderna por excelência, por ser inócua, por não se apresentar como solução, por ser mera expressão de um sentimento, facto que não implica um projecto de sociedade ou de resolução de um problema. É uma violência gratuita! A Revolta sem Revolução caracteriza o conflito social nihilista...
Já aqui falámos amplamente do legado de Maquiavel e da sua importância como momento fundador (não temporal, mas intelectual) da Modernidade. A defesa da operacionalidade, em detrimento do “dever ser”, é um prelúdio significativo duma inversão total na mentalidade do Homem. O homem define-se pela capacidade de operar, de agir sobre o mundo. O homem caracteriza-se então pela capacidade (poder) e não pela forma como desempenha a sua capacidade. O forte é o rico e não o justo! Muitos concordarão com a asserção, ignorando que este é o princípio de todo o terror e discricionaridade. Que se a obtenção de recursos vem anteriormente ao critério moral eu estou apenas sujeito à vontade e aos recursos dos outros. Não há razão para que outro não me mate, que não seja a minha capacidade de fazer valer a minha vontade. Este é o princípio de Hobbes, que encontra o seu apogeu na total submissão do governado ao governo. Esta é a origem de todo o Terror, verdadeiro fundamento do pensamento político moderno.
Uma das grandes questões do nosso tempo é precisamente essa. Aceitando o primado da funcionalidade acima do Ser, como posso eu ter opinião? Aceitando a discriminariedade, como posso rejeitar o mal? Como posso afirmar que não quero ser governado pelo senhor bin Laden, se acredito que tudo é força e que não há critérios para aferir o bem e o mal?
Se tudo são forças e contra-forças como posso escolher? Se vivo numa sociedade de assassinos terei de seguir gregariamente essa obrigação social?
O Terror é parte estruturante da nossa vida e constituição suprema das democracias vigentes. Quem quer que estude um pouco de filosofia política contemporânea ocidental, em particular na vertente “continental”, verá que ela tem como berço a “câmara de gás”. Todos os analistas, franceses e alemães de forma particular, percebem que o surto de liberalismo na forma de direitos individuais materiais face ao Estado tem como experiência fundadora a desumanidade dos campos de concentração. Sem esse medo o homem poderia voltar a crer no Estado e nos fundamentos morais que (erradamente) pensam ser a fonte de conflitos políticos. A negação do Holocausto é, por isso, uma ofensa estrutural às democracias vigentes (da mesma forma que a bruxaria era às Nações Cristãs), uma negação da sua própria existência e não mera forma de pressão e vitimização do “papão sionista”.
Esta sociedade da violência não é, também, muito diversa da mundividência de bin Laden, autêntico Protestante modernista[1], que pretende através de uma AK-47 trazer o Reino de Alá à Terra. A forma como a liderança da Al Qaeeda se considera capaz de escolher os que têm direito à vida e como consideram todas as suas acções, para além do bem e do mal, sancionadas por Deus através da sua crença, revela bem o caminho gnóstico, muito semelhante à perspectiva puritana descrita por Voegelin, que o movimento segue.
A forma como, por critérios de eficácia, os mentores da Al Qaeeda aceitam como parte dos “escolhidos” gente que não partilha as suas crenças, demonstra bem que o conflito de hoje é um conflito entre fundamentalismos modernos e não, como muitos querem fazer crer, entre o mundo antigo e o mundo moderno.
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[1] Como se o Islão não fosse já, em si, uma forma de protestantismo.
Etiquetas: Pensamento Tradicional
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