quarta-feira, outubro 28, 2009

Temperança Liberal














Uma das coisas que os proclamados liberais de hoje esquecem na História de Portugal é a forma como o último defensor da grande virtude liberal foi Salazar. A questão é muito simples e não deveria ser eu a levantá-la, dado o desprezo que o liberalismo me suscita, mas é absolutamente inaceitável que os liberais de hoje reclamem para si uma ideologia de que não aceitam sequer a premissa fundamental.
Salazar tinha uma visão consciente das limitações do Estado. Não só por não acreditar no papel absoluto do Estado (em consonância com a visão católica das finalidades da comunidade), como por não crer no Estado como máquina de criação de felicidade, Salazar nunca cedeu à tentação de ver no Estado uma solução para todos os impulsos e pedidos gerados pela sociedade. Este é um ponto anti-democrático, por certo, mas um de que nenhuma concepção liberal pode prescindir.
A defesa da virtude da Temperança é um tema recorrente do liberalismo clássico e algo de que não se encontra resquício na perspectiva neoliberal. Todas as teorias liberais clássicas cultivaram uma forma de aceitação das insuficiências e limites da vida humana. A Propriedade e o seu carácter inviolável constituíram as próprias fronteiras para a aceitação dos factos da vida. O tratamento médico, o conforto, a obtenção das matérias que permitem a satisfação das necessidades físicas mais básicas, seriam proporcionais à capacidade de troca no seio da sociedade. A sua não obtenção implicaria a aceitação da carência como lícita, quer por causas religiosas (castigo divino), quer pelo medo de violação da regra fundamental (anomia). Em todos os casos a aceitação da insatisfação era uma parte essencial da ordem, algo indistinto da mesma e incentivado pelos autores materiais e morais do ordenamento.
A razão para o desaparecimento da virtude da Temperança do programa dos proclamados liberais de hoje é simples e fácil de perceber face ao que foi dito. A confusão entre Democracia e Liberalismo é a principal causa para este lamentável esquecimento. Num sistema político como o liberalismo contemporâneo, onde os direitos individuais se encontram misturados indistintamente com a propriedade da comunidade, o voto é, forçosamente, uma arma de auto-satisfação e não de restrição ou temperança. Como já Platão e Aristóteles sabiam, a sociedade dos “muitos” é incompatível com as restrições a que a ideologia da propriedade obriga e todas as restrições são eliminadas pelas várias justificações populistas, as ideologias do estômago (populismos socialistas de toda a ordem).
O neoliberalismo padece desta mesma enfermidade de ser incapaz perante a insatisfação. Hayek, ao contrário de Locke ou Nozick, não postulou uma ordem política concreta. Nenhuma tradição seria preservável, porque a própria capacidade da sociedade da propriedade privada gerar satisfação, por via do progresso económico, iria manter a replicação dos valores que merecem protecção (i.e., a propriedade privada e a liberdade de associação). A história desmentiria Hayek e mostraria que a não existência de uma delimitação clara entre os direitos individuais e os direitos políticos, resultaria numa transição para uma social-democracia mesmo no caso dos Estados Unidos.
Órfãos, os neoliberais aceitaram a inexistência de um substrato inviolável pelo Estado e pela sociedade e aceitaram, como o Rui A. neste artigo, e deixar à democracia e à sociedade aquilo que é inamovível na sociedade. O problema está em que aceitar que as restrições às sociedades residam na sociedade é defender a ausência de restrições, ou seja, deixar as raposas guardar a capoeira. Não há nada menos temperado e liberal que isso.

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quinta-feira, outubro 22, 2009

O Mais Santo dos Santos


















As declarações de Saramago são uma das últimas páginas da história do marxismo. O Cristianismo é mau, porque na história da relação entre o Homem e Deus nem todos foram santos. O problema é sempre o mesmo. A mesquinhez de Deus vem de não ter distribuído democrática e igualitariamente a santidade, por nesta Terra não pairarem anjos, mas homens, por a história da relação com Deus estar limitada à falibilidade da compreensão humana.


O marxismo deu resposta a tudo isto. No mundo marxista todos são santos, porque não dispõem da capacidade de escolher o seu destino. No mundo marxista todos os que partilham da visão divina são santos, não por se comportarem em perfeita moralidade, mas porque as próprias finalidades humanas santificam toda e qualquer acção (o bombista comunista ou o ditador são o perfeito caso de santidade). No marxismo o Homem Novo é santo por partilhar a linguagem de Deus, a ciência positivista, que não lhe dá a possibilidade de errar.


A revolta de Saramago contra Deus é a revolta contra a imperfeição, contra a Criação. É a verdadeira revolta de um Homem Santo. De Deus aceita tudo, até as próprias categorias com que O ataca. Critica Deus por permitir o parricídio e o incesto, mas silencia o facto que a moralidade de onde obtém a repulsa máxima por essas práticas vem dessa mesma visão do Divino (escolhendo como crimes repugnantes aqueles que representam o máximo da censurabilidade social judaico-cristã). O problema de Deus não é o Princípio, mas a criação de um mundo imperfeito que Saramago e os seus comparsas se destinaram a aperfeiçoar, através de todo o tipo de crimes santificados pela sua identificação com a sua mais perfeita percepção do Divino (as leis imutáveis do materialismo e a sua relação com o último estádio histórico da humanidade).
É mais santo que o Santo Deus.


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domingo, outubro 18, 2009

Liberdades Civis
















Há tempos andava a a discutir o problema da sociedade civil com um amigo e professor. Este insistia que tudo o que não era sector estatal e tinha finalidades públicas seria considerado sociedade civil. O ponto era interessante, repleto de subentendidos hegelianos, mas completamente desfasado do modelo de Estado que temos. Como poderá este modelo de Estado Democrático, uma máquina vazia que apenas reconhece como elemento público a manutenção de esferas de individuais e em que todos os sentidos colectivos são preenchidos com a vontade do soberano colectivo, reconhecer em associações privadas as finalidades que o próprio se recusa a aceitar? Aceitar esta perspectiva implica tomar como elementos da sociedade civil as empresas ou sindicatos (que agem segundo o seu interesse próprio), uma associação de incentivo ao suicídio colectivo, uma sociedade de defesa da pornografia infantil. Onde nada exista de público, tudo aquilo que seja ou se mascare de interesse pela colectividade pode ser aceite como sociedade civil.
Claro está que esta sociedade civil nada tem a ver com aquele elemento que Tocqueville considerava preponderante na manutenção de um sistema de liberdade dentro do Estado Moderno. As associações humanitárias que lutam por direitos sociais e não fazem mais que pugnar pela destruição de todas as outras perspectivas culturais que sobrepõem uma concepção de Bem ao mando, são os principais opositores dessas instituições sociais, simplesmente por defenderem a total subordinação à fonte de poder por estas defendido. Esta posição é precisamente o inverso do que a sociedade civil originalmente é e corresponde a algo muito semelhante ao que sucede no poder autárquico actualmente, a transformação dos privados em servidores públicos.
Tocqueville apresenta a sociedade civil como fundamento da liberdade moderna, demonstrando como só numa sociedade com posição sobre o mal e o bem pode haver uma liberdade compatível com a reponsabilidade. Algo que é completamente estranho à sociedade civil actual e ao seu ritualismo da tolerância, a sua obsessão com a inserção incondicional do Outro, óbvio reflexo da impessoalidade e ausência de critério do Estado Moderno e seu sistema de crenças. Mas o que Tocqueville esqueceu foi a forma como a sociedade civil só pode existir num contexto de definição de bens exteriores aos sujeitos, mas que tem existência real e precedente à realidade política. Tal só pode ocorrer quando o Estado apercebe uma estrutura natural e assume que a sua própria criação só existe num contexto de aceitação de finalidades naturais e não políticas. A autarquia, a associação profissional, a família, só podem ter existência livre quando submetidas a finalidades que transcendem o Estado, mas que encontram neste o reconhecimento do seu carácter imperativo. Só podem ser livres se aceitarem o Bem (a família tem de acreditar que a educação tem valor, p.ex.), se o Estado aceitar as suas limitações naturais, se a sociedade descriminar entre as associações boas e as de malfeitores. Um equilíbrio mais complexo do que se pensa geralmente.

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quinta-feira, outubro 08, 2009

As Coisas Mais Estranhas







Num país onde a heterodoxia é a única norma, a Direita não consegue escapar ao gigantesco absurdo de se colar a rótulos e prescindir do pensamento, tornando-se apenas uma forma diferente de fazer a mesma política sem sentido que os mestres do regime querem hegemonizar.
Há dias falava com um amigo sobre este triste período eleitoral. Ainda que católico e estruturalmente anti-abrilino, esteve meia-hora a fazer uma apologia das maravilhas do poder autárquico, do seu carácter subsidiário (um chavão de certos católicos para simular encontrar a DSI no mundo de hoje) e da sua democracia-directa, a relembrar-me a notável tradição municipalista do Reino.
A confiança que tenho com ele desinibiu-me para uma informal gargalhada. Perguntei-lhe que raio de autarquia é essa que não vive dos seus próprios meios, mas de um bolo distribuído por uma entidade central. Que “autarkhea” é essa que vive de outros, que não se encontra limitada pela própria capacidade de gerar recursos? É evidente que nenhuma subsidiariedade existe ou nenhuma descentralização é possível sem recursos próprios e autónomos.
Quanto à democracia-directa, quando é realizada com dinheiro de outros, tem o nome de socialismo. Onde se vota por algo que não pertence ao estrito domínio das posses dos votantes, acaba sempre por se admitir o crescimento exponencial das competências da mesma. O dinheiro com que as Câmaras constroem habitações sociais é do Estado Central… Está-se mesmo a ver os cidadãos a rejeitar uma free-ride aparente, em nome das empresas e postos de trabalho da zona!...
Falar-se desta palhaçada como algo de tributário da tradição municipalista portuguesa não é apenas insultuoso, mas demonstra uma vontade de participação na brincadeira democrática que é ridícula. Na tradição municipalista portuguesa o carácter contributivo da política local impedia que o Estado adquirisse carácter assistencialista, confundisse o privado e o público, extravasasse as competências de que estava investido. Com actual sistema de administração local de recursos centrais, florescem os Jardins, os Loureiros e as Felgueiras, autênticos eucaliptos que secam o erário endividam o Estado para a sua manutenção no Poder.
É uma tradição nova, com certeza.

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quinta-feira, outubro 01, 2009

Retratos do Humanismo Sem Deus

"Only we Germans could have made human beings out of these Poles."

Max Weber