O Ser Tradicional
O
Rafael relembrou Vasquez de Mella na asserção de que a Tradição separa os homens dos animais. Poucas coisas tão certas e tão pouco compreendidas se terão escrito em tão poucas palavras.
O homem realiza-se na sua natureza por ser um ente moral e esta por corresponder a um conjunto de condicionantes no espaço e no tempo, que ditam as acções dos homens. Para tal precisa de uma identidade, de um conjunto de localizações do seu percurso, que o permitam compreender onde está e para onde pode ir. Os três marcos essenciais, pontos de partida, presente e de chegada, não podem ser compreendidos senão por um processo tradicional, ou seja, de aceitação de uma sabedoria que precede o indivíduo e que abarca mais tempo e mais compreensões do que as repousam na percepção individual. Imagine-se o passageiro de um autocarro a tentar compreender o destino do mesmo tendo apenas como base as suas impressões e experiências e sem compreender as razões da existência dessa carreira. Sem compreender as finalidades da acção, nenhuma compreensão seria possível.
As tradições existem por isso mesmo, para dotar os homens de um enquadramento, de uma história que os preenche nas suas identidades, como fotografias da sua vida que fazem parte da sua interpretação de si mesmo.
A Tradição é, porém, algo maior que essas tradições, porque é um conjunto de elementos que as elevam ou fazem cair. Possui por isso um elemento revolucionário (no sentido primordial de reaproximação à natureza do objecto decaído), mas profundamente permanente, porque inspirado pela visão das coisas não perecíveis. (Melhor que a
Aliança de Trono e Altar, só mesmo a tensão entre as duas que é a base da verdadeira liberdade)
Como conjunto de princípios e finalidades humanas, a Tradição nunca se deixa absorver pelas tradições, marca dos tempos que vivemos e das suas circunstâncias, mas nunca destas pode prescindir, sob pena de, como algumas ideias políticas modernas, ficar a pairar acima da acção.
Tem razão o
Miguel quando critica
“as tradições incensadas pela Direita”, porque estas são, pela sua natureza circunstancial, meras cristalizações de práticas do passado, que em muito perderam as finalidades e a veracidade que possuíam. São cultos a deuses mortos que se repetem por prática reiterada por hábito e amor ao antigo e ao passado (ao estilo dos conservadores que escolhem à la carte a parte do passado que mais lhes convém, como bem lembra o
Rafael), esquecendo que a parte mais importante do que é transmitido se encontra naquilo que está para além da circunstancialidade e que determina a acção no domínio do contingente. É típico de povos sem futuro este agarrar ao passado... Em vez de discutir quem somos e quais são as nossas finalidades, prescindimos disso, prescindindo do presente e do futuro em prol de um ritualismo morto, rezando a deuses pela simples razão de julgarmos serem os dos nossos antepassados.
Estamos mortos, sim senhor!
A quem não acredita no interesse das tradições, proponho que imagine um autocarro em que o destino seria ditado pela vontade do último passageiro.
A quem não acredita na Tradição, proponho que imagine um autocarro onde não é possível pedir ao condutor para se desviar de um buraco, para melhor chegar ao destino.
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