Constitucionalismo Tradicional (II)
É frequente ver comparar o liberalismo de Hayek e de Burke. Se é verdade que à superfície existe uma semelhança evidente, existe um grande desconhecimento das fontes da posição “whig” de Edmund Burke, que provém, essencialmente, de todo um século de interpretações pouco profundas da posição do anglo-irlandês.
A recepção novecentista de Burke foi, salvo raras excepções, incompleta (também por alguma incapacidade de acesso à correspondência de Burke), tendo dificuldades em enquadrar a posição das Reflexões com a prática de uma vida de prudência política e da mesma como arte conciliatória.
Os autores conservadores que Hayek aqui menciona, foram leitores de Burke, mas procendendo a uma leitura de um Burke utilitarista, pragmático, liberal, convencionalista. Para estes, Burke era um defensor da História contra a Teoria, da Tradição contra a Especulação, do Experimentado sobre o Novo. Há nisto um fundo de verdade, mas uma verdade superficial, que é incapaz de compreender a profundidade de um pensamento original, vendo apenas a parte que o identifica com eles próprios.
É evidente que se Burke fosse o mesmo que Hayek nunca teria escrito as Reflexões. Hayek não era um jusnaturalista, mas um convencionalista-utilitário e darwinista (ao bom estilo vitoriano). Acreditava que não existia nenhuma razão para conservar algo por si, mas pela forma como esse algo se reflectia na vida dos cidadãos. O liberalismo seria uma forma mais perfeita de sociedade e iria, portanto, sobreviver em virtude da capacidade que possuía de gerar o apoio. Não se ancoraria, portanto, em mais do que essa natureza da sua própria superioridade, ao contrário do que defenderam os jusnaturalistas liberais. Esta concepção encontra-se numa encruzilhada de várias tradições anglo-saxónicas modernas e de uma pincelada de Kant, mas que não é, certamente, a de Burke.
Burke fez questão de explicar que uma comunidade política que se rege segundo a Vontade, individual ou colectiva, está condenada à impossibilidade da Liberdade. Essa impossibilidade não é apenas a observada por Tocqueville de que sem Deus e a Tradição a propriedade é incapaz de ser preservada, mas que sem uma concepção do Bem como ordenadora da comunidade, todo o tipo de males e crimes estão ao alcance da santificação por via popular. Tal pressupõe, como daí decorre, a existência de uma ordem moral permanente e que compete à Comunidade preservar. Daí que Burke assuma a Liberdade não como uma esfera de autonomia privada, mas como a existência de um elemento que a postula e segura. Por isso existe uma moralidade que tem de ser consagrada constitucionalmente, não em virtude do número ou do apoio dos seus cidadãos, mas por lhe pertencer intrinsecamente. A Liberdade de Burke realiza-se na Virtude, porque esta é, sobretudo, estar livre do Mal e da arbitrariedade que este gera.
Dizia Pedro Arroja que tanto Friedman como Hayek nunca conseguiram explicar porque é que o “milagre económico chileno” não veio acompanhado de um regime de liberdades civis e políticas democráticas. O problema da Democracia foi diagnosticado há mais de dois milénios por Aristóteles. Este regime é oposto ao “governo constitucional” (a Politeia ou República), porque não aceita que exista uma legitimidade que não seja a Vontade Popular. Não aceitando que exista um limite aos desejos da população, aceita a inexistência de limites ao Povo. Este pode, se assim o desejar, tomar posse injustificada da propriedade de outrém (o Estado Social) ou mesmo retirar-lhe o Direito à Vida. Esse limite constitucional é o que permite o “rule of law”, porque onde quer que a população possa mudar a lei, não existe, em boa verdade, legalidade. Como Strauss bem notou, não há possibilidade de liberdade onde os indivíduos se considerem proprietários da comunidade. Não compreender esta oposição entre a Liberdade (quer a de Burke, quer a de Locke) e a Democracia das crias de Rousseau e Marx, é pactuar com o que está mal no mundo. Para isso já temos liberais de sobra cá no burgo...
Etiquetas: Conservadorismo
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