terça-feira, dezembro 06, 2005

Da Boa Governação

O que caracteriza uma boa governação não é a sua conformidade com a “vontade popular”. Se assim fosse os governantes teriam apenas “mandatos imperativos”, o que significaria que estariam vinculados à vontade do eleitorado[1], fosse por capacidade de um “recall”, um acto de vontade do soberano (povo) que teria o efeito de remover, sem adução de razões ou particularidades, o executivo do cargo. Poderia ainda haver uma contratualização o que significaria que o executivo estaria vinculado pelo seu programa, não se podendo desviar dessas linhas programáticas, sob pena de perder o mandato.
Esta forma de “democratização” representa o sonho do “esquerdalho”, dos “mediocratas” e da Manuela Moura Guedes. Estranha-se, por isso, que alguma (suposta) direita pugne por essa forma contratual de olhar a política.
Troca-se a necessária estabilidade de uma governação por um ideal nebuloso de legitimidade. Postula-se que a legitimidade de um acto governativo provém de actos de vontade popular... A avaliação da lei seria feita com base nos apoios que esta possui!
Dir-se-ia correcta a lei que é apoiada pela maioria. Ao adoptar este critério estaríamos a aceitar o totalitarismo rousseuniano, que coloca na vontade (e não na justiça) a aferição da correcção de algo[2], o que nos lança num altruísmo radical e num vazio da individualidade. A acção governativa seria apenas uma excrescência necessária da comunidade, como defende Rousseau[3].
A gravidade desta posição encontra-se nesta ideia, mais até do que na vulnerabilidade e volatilidade inerentes da vontade dos indivíduos.
Quem observa a correcção de algo à luz da vontade popular encontra-se cativo de uma concepção simples, mas errada. “Eu gosto porque os outros gostam”! Daí emerge o seu sucedâneo “eu sou democrata, gosto do que (e porque) os outros gostam. Tu não és democrata, portanto concordas com o que é feito contra a vontade popular.” A estreiteza de perspectiva é evidente...
Para concordar ou discordar de algo há que possuir uma concepção de justiça e não uma limitada ideia do que os outros pensam. Sem isso não é possível escapar ao totalitarismo que exclama “as coisas são como são” ou a versão dos auto-proclamados conservadores “vivemos no melhor de todos os mundos possíveis”. Só é livre quem tiver esta maravilhosa concepção de que há uma ordem superior às vontades dos outros, porque só esse poderá ser submisso ou insubmisso! Os que não têm concepção de justiça, os que olham para o lado para ver se o vizinho, ou o jornalista, ou a comunidade, concorda ou discorda não tem espírito para obedecer... Tem a capacidade política efectiva de um animal de quinta[4]!
A Constituição dos EUA compreende esta problemática, lançando por isso barreiras à vontade popular. A eleição indirecta do Presidente da Federação, o Supremo Tribunal de cargos vitalícios, a reverência pela Constituição (em vias de extinção por acção da actual administração e das precedentes) eram fundamentais na distinção da República de uma Democracia. A Democracia é, de facto (e quanto muito), um meio! Não um fim...[5]

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[1] A forma Povo é sintomática do que referimos, uma vez que esta toma uma parte, o eleitorado, pelo todo, o conjunto dos indivíduos. Isto significa uma personificação curiosa de uma coisa por outra... Criar uma sanção da totalidade quando o que existe é uma sanção de uma parte da população.
[2] Strauss define o totalitarismo de Rousseau em The Three Waves of Modernity.
[3] Em o Contrato Social.
[4] Está limitado ao “prazer e dor” dos proto-utilitaristas ingleses do século XVIII. A submeter-se a quem detém a “vara”.
[5] Imperiosa a leitura do texto “Democracy is a Means, Not an Ending” do Old Republican Michael Munger.

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