sexta-feira, fevereiro 15, 2008

Um Esclavagismo Presente















Como mencionei, existem dois problemas essenciais na questão da escravatura, o natural e o convencional. O natural respeita aos indivíduos que são incapazes de se governar e de que a História nos dá amplos exemplos. Os Astecas e outros povos selvagens (em particular os que conduziam guerras de escravização junto dos seus vizinhos, p.ex.) de todos os continentes (digo-o com plena consciência e contra a mentira relativista contemporânea), com a sua religião de morte, com a criação de guerras para a satisfação do seu desejo de sangue, com a incapacidade da manutenção de qualquer regra que não fosse a capacidade de obtenção de vítimas sacrificiais, estão entre alguns desses exemplos de povos para os quais o paternalismo é a única alternativa.
Curiosamente, para os mais atentos, aqui já se deu um salto ilustrativo do abismo entre o pensamento Clássico e Cristão. O Modernista coloca a questão do paternalismo como Escravatura, enquanto que o presente escrevinhador havia realçado a diferença entre a relação paternal e a relação esclavagista. Na relação paternal existe uma preocupação com o bem do outro enquanto que na esclavagista a obediência se faz numa relação homem-objecto ou animal não-humano. Isto mostra bem até que ponto o Cristianismo operou uma revolução nos conceitos de Humanidade, que até a povos que personificam a crueldade e a barbaridade, reconhecemos uma característica humana. Mas demonstra, também, a forma como ao Modernismo repugna a acção benevolente não executada pela vontade do próximo. Em vez de reflectir sobre «quem deve poder governar-se?», reflecte sobre como criar esferas autonómicas para a obtenção de uma sociedade pacificada, onde cada um é senhor do seu universo particular. O problema está em que o universo particular não sobrevive sem uma reflexão sobre os objectos exteriores e da contraposição da visão dos mesmos com outros. Sem essa “comunidade” o universo particular resvala para o pesadelo da incompreensibilidade e da incomensurabilidade, que criou as “vontades de poder individuais”. Nietzsche tinha mais de vítima das ideias e da estrutura do Ser, do que de criador do Hitlerismo.
O problema é sério e por isso considerei a crítica que me foi dirigida pelo Modernista, uma crítica justa. Ela de facto “cabe” no que se disse, mas levanta mais problemas para um liberal. Qual era o fim da Conquista dos Astecas? Permitir a subsistência daquela cultura homicida era possível?

Esta questão leva-nos ao segundo ponto. O que se encontra no fundo da guerra? Depois da vitória existe, para o Cristão, apenas uma questão: como preservar a vida do homem que se rendeu? Se ele não abandona a conduta que conduziu à guerra é possível devolvê-lo à liberdade e à disposição de si? Evidentemente que não, porque isso demonstraria a injustiça fundamental da guerra movida, de uma acção que poderia ter sido evitada. Não existe qualquer povo que mova guerras justas e que possa afirmar que não tutelou o oponente até que este cedesse e se organizasse segundo outras finalidades ou acções.
Não existindo colectivismo no mundo antigo e no mundo medieval, o fim da guerra estava impossibilitado em tranformar-se numa responsabilidade partilhada. O resultado da vitória era um conjunto de contratos individuais de dominação entre o detentor da espada e o que a havia deixado cair.
A Igreja, incapaz de contrabalançar este “privatismo convencionalista”, lá foi balizando a ordenação dos esclavagistas (de modo a não se alcandorar a entidade política-administrativa). Daí as condenações morais do roubo aos bens dos povos africanos, daí a condenação de todo o tratamento degradante ao escravo, daí a proibição moral da tomada de escravos, daí a sua incapacidade para proibir o tráfico esclavagista e a resolução privada do “fim da guerra”. Não se podia fazer escravos, mas podia-se comprar escravos aos que o podiam fazer.
Não havia alternativa real. Esta veio depois com a colectivização da guerra e da sociedade sob a forma de campos de prisioneiros que se mantiveram para além das guerras.

Havia um significado escondido dentro do texto anterior, realmente. Era mais uma linha argumentativa do que uma ideia e que iria ser explicada neste texto, em que a minha posição sobre a Escravatura é mais explícita.
A Escravatura era um mar de erros, como tanto do que constitui a humanidade. Deixava aos vícios privados a ordenação de homens que deveriam deles ser libertados (ainda que sempre com obrigação moral de o fazerem, muitos não o fizeram). Se no plano económico o Ocidente se conseguiu libertar da dependência desta instituição, foi apenas porque a mão-de-obra escrava liberta (desligada de famílias ou associações) se tornou mais barata por trabalhar “à jorna”, em vez de requerer manutenção logística do sistema esclavagista... Muitos passaram a viver pior e a morrer à fome em tempos crise económica. Afirmar que esta relação jurídica é simplesmente má, esconde o facto de muitos terem passado a viver pior, que apenas contribui para uma mitificação do liberalismo que não tem nada de real.
A grande contradição liberal reside também aí. Não é possível o mito da autonomia sem que nos respeitem a autonomia e não é possível que nos respeitem a autonomia sem guerra e o esclavagismo que esta impõe (qual o sujeito não-utópico que discorda disto?). Em Guantanamo os Estados Unidos pagam pelo seu próprio mito. São corroídos por ele, perseguidos pela própria ideia de liberdade e justiça procedimental e individualista de que são herdeiros. Não há escravos em Guantanamo?

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