quarta-feira, fevereiro 13, 2008

Reacção ao Texto do Corcunda

Relendo o magnifico texto que o caro amigo Corcunda me dedica — num espirito, que abraco, de amizade a Verdade e a Platao, sempre por esta ordem de prioridade — conclui que a minha primeira leitura nao tinha atingido os aspectos mais penetrantes. O Corcunda, parece-me, revela-se aqui discipulo daquele metodo de escrever filosofia que, depois de Strauss, conhecemos como “esoterico”. O texto do Corcunda esconde uma narrativa mais geral, coerente e profunda do que o que parece a primeira vista.

Num laconico comentario a um post anterior do Corcunda sobre o Padre Antonio Vieira e a uma serie de comentarios sobre a escravatura que se lhe seguiram, escrevi que a escravatura “foi sempre um mal e um erro”. O Corcunda dedica-me um texto que me desafia a explorar a questao da justificacao moral da escravatura. Mas ha mais do que isso no desafio do bom Corcunda. Nao fora uma incontornavel amizade a um Platao-Modernista, que o induziu a dizer as coisas mais importantes sob forma esoterica e num espirito de aristocracia intelectual, o Corcunda confrontar-me-ia implacavelmente com a seguinte questao: “Sera que nessa condencao tao firme da escravatura tu, o Modernista, fostes seduzido por uma vulgata voluntarista, que em ultima analise conduz ao nihilismo e portanto destroi os proprios termos que procura sustentar?” Com esta questao, se for essa a questao, o Corcunda forca-me — e eu nao o lamento — a por as melhores cartas que puder em cima da mesa.

A minha reaccao tem duas partes. Na primeira debato a questao da escravatura — e a questao maior da fundamentacao etica para a qual qualquer discussao seria da escravatura inevitavelmente remete — do ponto de vista filosofico. Na segunda, menos importante intelectualmente mas muito mais relacionada com o meu comentario, debato a questao da escravatura como instituicao social praticada na historia e com efeitos que a historia regista e critico o que considero o impulso idealista do Corcunda.


I

1. “A escravatura e uma violacao dos direitos de todo o ser humano e uma instituicao social abjecta porque reduz o individuo, um fim em si mesmo, a um objecto apropriavel e transaccionavel”. Esta frase condensa o que, julgo, e a opiniao dominante sobre a escravatura, inclusive entre intelectuais. Mas ate que se explique porque e que cada vontade individual deve ser “livre” no sentido implicito na frase, ela nao passa de um slogan e de um dogma. A questao, portanto, e: o que e que justifica a assercao de que o homem e um “fim em si mesmo”? Poucas pessoas consideram que a questao faz sentido. Tomam por axiomatico o individualismo moral — a tese de que o individuo e a vontade individual sao “dados” primarios e auto-validados no espaco moral. Julgo, por outro lado, que a maior parte dos que perfilham o individualismo moral nao sabem o que fazer se forem obrigados a defende-lo.

2. A verdade e que o dogma do invidualismo moral baseia-se num equivoco originario. A filosofia moral moderna, confrontada com a a desintegracao social de uma concepcao unica de Bem e, ao mesmo tempo, com a exigencia de universalidade racional, tomou como tarefa definir uma etica distanciada do Bem. O Bem seria “materia de cada individuo”, nao porque nao esteja sujeito a discussao (diferentes filosofias modernas opoem-se a esse respeito) mas porque a Razao nao pode “arbitrar concludentemente” a disputa entre concepcoes diversas do bem. O projecto da filosofia moral moderna e, portanto, o de secularizar a etica. A ambicao e a de alcancar, perante o facto do pluralismo religioso e moral, um ponto etico arquimediano. Este ponto tem uma dimensao puramente instrumental, na boa tradicao Maquiavelica e Hobbesiana, porque e uma especie de “Etica de consenso” ao alcance da “Razao” isolada. Ora, quis-se que esse ponto arquimediano fosse o individuo e os seus “direitos”. “Podemos discordar sobre o Bem mas nao sobre a autonomia e os direitos do individuo”. Kant e o representante mais notavel deste projecto, mas com ligeiras alteracoes todos os grandes da Etica Moderna pertencem ao mesmo movimento de ideias: Locke, Bentham, Hume, Smith, Humboldt, etc. O elemento central do projecto e o de que ha dois estratos no espaco moral: o estrato dos “direitos” e o estrato do “Bem”, completamente independentes. A justica, uma virtude sobretudo politica, desloca-se do terreno do Bem, designadamente do Bem Comum, para o dos “direitos”. O Bem passa a ser materia “privada”.

3. O equivoco originario esta no esquecimento de que uma etica divorciada do bem e uma contradicao nos proprios termos. E um projecto impossivel. A etica — algo que muitos filsofos de “sistema” esquecem — dirige-se a pessoa moral. Mas a pessoa moral nao pode ser motivada por razoes desligadas da concepcao de Bem que perfilha. Nem pode racionalmente — e isto e crucial — tomar o Bem como materia privada, quer porque e do Bem que recebe as normas pelas quais rege a sua interaccao com o outro, quer porque muitas (e todas as nao-vulgares) concepcoes de Bem — entre as quais a etica crista, de longe a mais importante no ocidente — nao sao sequer compreensiveis como puras materias da “consciencia” definidas pela preferencia individual. O Bem e, pelo menos em parte, “Bem Comum” e o homem e um animal politico. Justamente por esta razao a etica dos “direitos”, fundada no axioma do individualismo moral, nao e etica nenhuma. E um sistema de abstraccoes sem relevo “pratico”, no sentido proprio do termo. Falha a missao primordial de motivar a conduta da pessoa moral. Se eu acredito no Bem nao atribuo relevancia etica independente a um “estrato primario” de direitos; se nao acredito no Bem nao tenho nenhum motivo para acreditar em “direitos”. O individualismo moral conduz, paradoxalmente, ao nihilismo, porque viola as proprias premissas da Etica. Kant, que era um genio, percebeu em alguns momentos isto e por isso fundamentou o “dever moral” numa metafisica secular (absurda) baseda numa concepcao de liberdade (paradoxalmente) hiper-religiosa mas sem conteudo espiritual. Dai que a etica Kantiana seja, ao mesmo tempo, a mais brilhante e mais ridicula versao da etica moderna.

4. Posto o que disse, e evidente que a condencao vulgar da escravatura e completemente desprovida de merito intelectual. E nao a partilho. A escravatura so pode ser julgada relativamente a uma concepcao do Bem. Do ponto de vista arquimedianao — a visao total do Mundo, mas apenas do Mundo — esse ponto de vista e sempre fatalmente relativo. Mas aquele que perfilha uma concepcao do Bem coloca o seu julgamento acima desse Mundo limitado e portanto julga o Mundo a partir de uma concepcao de Bem que toma por verdadeira, por absolutamente verdadeira. Como Catolico, e assim que eu coloco a questao da escravatura: julgo-a pela metrica da etica crista. (E quando falo em etica crista nao e aquela especie de etica chamada “moral judaico-crista”, uma vaga categoria sociologica, a que me refiro, mas a etica de um crente orientado pela teologia moral). Isto significa que a minha critica das instituicoes sociais e a minha vontade politica nao se definem fora, mas antes a partir, da concepcao de Bem que perfilho. Sobre isto direi mais a seguir, mas insito que nesse aspecto estou (quase) em sintonia total com o Corcunda quando ele defende que nao ha liberdade fora do Bem.

5. Diz o Corcunda — e bem — que a escravatura so se pode justificar quanto aqueles que tem uma incapacidade irredutivel para participar na ordenacao do “Bem Comum”. Isto implica duas coisas fundamentais. Em primeiro lugar, que so condicoes muito exigentes justificam a escravatura (embora me pareca que isso so e verdade do ponto de vista de uma certa visao do Bem, certamente uma que eu e o Corcunda tomamos por verdadeira); em segundo lugar, a escravatura e teoreticamente licita, porque em certas condicoes pode ser a unica forma de fazer o Bem. Aceito estas premissas.

6. Chamo, no entanto, a atencao do Corcunda para o facto de eu ter dito que a escravatura “foi sempre um mal e um erro” em vez de ter afirmado que “a escravatura e, por definicao, imoral”. O meu juizo era condicionado a historia da escravatura, que julgo odienta e, alem do mais, evitavel. Sobre isso falarei na segunda parte, onde criticarei a tendencia do Corcunda para escorregar da historia para a filosofia, cometendo o erro do idealismo. Mas sobretudo quero salientar que nao me parece de modo algum que alguma vez se tenham verificado as condicoes que o Corcunda sabiamente impoe. A escravatura depende de uma total inabilidade para o uso da liberdade que exige uma forma radical de paternalismo moral. Uma etica, como e a Crista, que proclama como norma basica a igualdade moral de todos os individuos, nao pode deixar de desconfiar de um desvio radical como a escravatura. Claro que, bem nos entendamos, a igualdade moral implica o bom uso da liberdade — nao e um “direito”, uma pretensao auto-sustentada. Mas o ponto e que, julgo, o ideal Cristao e o da autonomia moral do individuo. Sobre todas as formas de ordencao exterior recai o onus da prova. Isso nao significa, claro, que seja impossivel, ou sequer altamente improvavel, que se faca “prova bastante”. Mas condicoes como as que o Corcunda, e bem, impoe para justificar a escravatura sao de tal modo exigentes que gostava que ele me desse exemplos. O que temos a registar na historia — mas disso falaremos depois — e que a escravatura foi um espetaculo de vicios, desde a venda judical de familias para pagar dividas ate a exploracao economica dos escravos. A historia da escravatura e a historia da degradacao moral do ser-humano.

7. Um ultimo comentario nesta primeira parte a frase do Corcunda, segundo a qual: “So ha liberdade onde ha Justica.” Esta frase pode querer dizer muitas coisas. Uma das coisas que pode querer dizer, na linha do que disse ate agora, e que nao ha liberdade acima e fora do Bem (Justica entendida como a parte politica do Bem, o “dar a cada um o que e seu” em que o criterio do que “pertence a cada um” e uma concepcao do Bem Comum). O Corcunda aqui exagera. Ele nao deixa espaco, na esfera politica, para a possibilidade do erro, nomeadamente o erro fundamental. Eu sou cristao mas nao me alieno, na conviccao da minha crenca, da capacidade intelectual e emocional para testar os dogmas em que acredito e o que tomo por verdadeiramente Bom. Esta atitude, cultivando a liberdade critica, nao equivale de todo a embarcar no absurdo projecto dos “dois estratos” da filosofia moral moderna. Como disse, o meu juizo moral e — como nao pode deixar de ser — inevitavel funcao da concepcao de Bem que perfilho. Mas isso nao me transforma num dogmatico cegado pela crenca. Julgo fundamental dar a mim mesmo e ao outro — inclusive ao outro participante na esfera politica — alguma liberdade para criticar. A liberdade critica que a Modernidade deu ao homem nao o conduz necessariamente ao vazio espiritual e a corrupcao do Bem. So um pessimismo antropologico extremo, que procura o dogma como ferramenta de coesao e ordem e nao apenas como deposito das aspiracoes do crente, pode conduzir, como me parece conduzir muitas vezes o Corcunda, ao tradicionalismo mais amorfo e alienante. Nisso, eu assumo a minha clara inclinacao modernista. Nao ha vida decente sem crenca, mas nao ha crenca verdadeira sem critica, teste, interlocucao e criacao.

8. Se agora o Corcunda me perguntar como e que eu defino as esferas do Bem e da liberdade critica numa comunidade politica a minha resposta e que nao ha nenhuma “definicao”, porque nao ha nenhuma meta-teoria que resolva a questao de saber como e que o crente deve distribuir a sua vitalidade e aspiracao entre as tarefas opostas de curvar-se ao que lhe aparece como sagrado e abracar o impulso para nao deixar o dogma converter-se em carapaca vazia de sentido. Mas claro que para mim esta e uma das questoes mais importantes em teoria politica. E o meu modernismo conduz-me para regioes diferentes daquelas em que o Corcunda se sente mais em casa. Nao ha em mim um unico cabelo Miguelista!


II

9. O mais importante e a discussao filosofica, mas sobre a escravatura ha uma historia que nao pode ser ignorada. O Corcunda responde a minha assercao de que a escravatura foi sempre um mal com uma analise da escravatura em Aristoteles. Mas a nao ser que o Corcunda, paradoxalmente, se sinta atraido pelo mote Hegelianao de que o filosofo e um “filho do seu tempo” no sentido radical em que fala a “razao da epoca”, estranho como possa achar que e na filosofia que se faz o julgamento de uma instituicao social que atravessou varios seculos. So um idealismo que julgava extinto e que pode convencer-se que em Aristoteles se encontra a praxis humana de uma epoca vertida em palavras. Nao e essa, com certeza, a posicao do Corcunda. O argumento dele sobre a escravatura permanece, por isso, envolto numa aura de misterio.

10. A historia da escravatura nao e, no computo geral, a historia da harmonia entre razao (ou natureza) e convencao. E a historia de leis injustas, desligadas do bem, de abusos, morais e economicos, e da exploracao do homem pelo homem para outro fim que nao o da realizacao da vontade mais mesquinha e do poder mais reles. No Mundo Classico as leis, em certos periodos, forcavam a escravatura de pessoas livres para pagar dividas. Mesmo nos casos mais brandos de filosofos e intelectuais que eram tomados escravos fruto de conquista e tornados perceptores nao ha nenhum motivo para aplaudir a escravatura — os escravos eram superiores intelectualmente ao senhor. E a expansao imperial das potencias ocidentais tornou a escravatura numa degradante forma de gerar mao-de-obra. Nada disto tem o que quer que seja que ver com a aspiracao moral e intelectual de que o Corcunda fala, sob a sombra comoda de Aristoteles. Poder, vontade e falta de sentido do bem e da justica — esta diabolica trindade parace-me resumir menos mal a complexa historia da escravatura do que as imortais palavras do Filosofo.