sexta-feira, setembro 24, 2004

Os Problemas da Democracia Liberal (V)

As Origens do Problema

Sabendo, através das reflexões clássicas de Platão e Aristóteles, Políbio e Cícero, Burke e Madison, da existência de uma utilidade concreta do regime democrático, é preciso compreender de que forma poderá esse regime ser virtuoso e justo.
Platão (em As Leis) e Aristóteles (em A Política) teorizam a sua utilidade num contexto de degenerescência da cultura, como tentativa de encontrar um denominador comum, uma "partilha mínima" da sociedade (daí que o critério efectivo de desempenho de um cargo público seja a liberdade). Para eles a democracia só poderá sobreviver com o auxílio de outras formas de governo (Platão), ou com uma subordinação completa à constituição, que se retrata como resquício e forma residual de um bem-comum espiritual perdido (Aristóteles).
A Democracia tem de se humilhar, para que não se torne um monstro ao serviço do despotismo da multidão.
Políbio assume a herança dos filósofos. Teoriza a estabilidade como um bem e a bene commixta (a constituição mista) como única forma de escapar à natural degeneração dos regimes e aos males dela derivados. Um sistema que englobe os três regimes poderá mais facilmente adaptar-se no tempo. O papel que a Democracia tem no seu esquema constitucional encontra funções preponderantes de controlo das multidões, ajudando os outros elementos (monárquico e aristocrático) a moderar a sua sede de Poder e a irrestrição de seus desejos.
Cícero prossegue este raciocínio, enquadrando-o na reflexão sobre as tradições de Roma e sobre o Direito Natural Estóico.
A Democracia prosseguiria mais ou menos sob estas premissas até o Renascimento e até ao apogeu renascentista que se encontra licensiosamente na Modernidade.

A Modernidade destrói esta concepção de Democracia controlada, tornando-a um mal irrestrito, uma sofista ditadura do poderoso, do verboso, do menos escrupuloso em vender o que é comum a preço de grossista.
O diagnóstico é traçado por Gianbattista Vico na sua Scienza Nuova. A degeneração espiritual das sociedades obedece a uma corrupção moral, a uma perda de domínio pelas suas elites, que perdem a capacidade de aplicar os padrões éticos formados na sua Idade de Ouro. Assim se procede à descrença da sociedade nos padrões éticos tradicionais e rapidamente à crença de que não existem padrões morais... Os exemplos de Atenas e Roma, e posteriormente o Europeu, são exemplos claros de uma decadência que é moral, movida pela inveja das classes inferiores, pela sua sede de direitos e posse.

Outro diagnóstico da Modernidade é o de Lord Halifax, que observa a desagregação espiritual da Inglaterra e prescreve o retorno à moral aristotélica. O Rei deve ser o foco de unidade, preservado como forma de manter o Poder tradicional e consequentemente a obediência. Ele deve ser o balanceador da Nação, ouvindo a voz do "desejo" do Povo, expressa pelo Parlamento (orgão consultivo do Rei) , mas vertendo a sua acção numa prudência que vise a "justiça".

Burke prosseguirá (claramente) esta reflexão. O seu diagnóstico da Modernidade é, precisamente, o apogeu da "ditadura da vontade", a sua irrestrição. A política que é baseada apenas na vontade, individual ou comum, está irremediavelmente condenada ao insucesso ou à bestialidade. A crítica a Rousseau é por demais evidente. Uma colectividade que se considera absolvida de moralidade e onde a vontade coincide automaticamente com a moralidade, estará a caminho do Terror Revolucionário de 1879.

Uma sociedade rousseuaniana (como a nossa) pode declarar (por maioria de 2/3) a morte de quem quer que seja (uma vez que os limites materiais de revisão constitucional estão a ser revistos!!! Suprema ironia!). O Império da Lei, que à boca cheia, os liberais modernos proclamam não passa de uma farsa. Que Império da Lei é esse, quando se pode modificar a lei a todo o momento, que se ri da Constituição marxista de 76 com hábeis (algumas, outras nem tanto!) interpretações legais? Que lei é essa que os tribunais aplicam, indiscriminadamente, seguindo o que consideram "o consenso generalizado do povo português"? Essa interpretação extensiva não passa da mais abjecta ditadura da mediocridade! Quem é um juíz para se considerar detentor da chave dos consensos do povo? Mais divertido ainda é encontrarem-se constitucionalistas (como o Prof. Miranda) a defenderem esta sensista interpretação da actividade jurisdicional, como se um avanço da civilização se tratasse!!! E se o consenso social fosse a propriedade comum das mulheres, ou a permissão do homicídio nas férias do Carnaval?!

Esta gente arroga-se de gente conservadora e defensora de moral.
Não há limites para a vergonha e a comédia de enganos em que vivemos.

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