More e o Estado de Ideais
Ao Afonso
Muito do que se escreve actualmente sobre São Tomás Moro é uma fábula de pouca importância para compreender o que o Santo defendeu na realidade. O problema está, como de costume, nas dicotomias. Os que acham que a acção de More foi ditada por uma afirmação da liberdade de consciência, com as consequências secularistas e individualistas que a mesma implica, perante a “Razão de Estado”, enganam-se (apoiados num disparatado imperativo categórico). Quando fora Lord Chancellor, More distinguiu-se no combate legal à heresia e na conversão dos heréticos, submetendo à consciência dos próprios a possibilidade de renegarem as proposições contra a Fé que os tinham colocado nessa situação, evitando assim as medidas mais extremas.
Em suma, só aquele que crê que só existem dois posicionamentos na vida (a liberdade do homem no deserto ou a servidão gregária e animalesca), pode fingir que o conflito de More contra Henrique VIII seria uma defesa do direito humano à sedição e não uma defesa de que o Estado esteja limitado pela Fé que o transcende e sem a qual toda a obediência se transforma em incompreensibilidade. É contra a sedição do Rei face àquilo que lhe permite ser um governante justo, que More se insurge através da recusa do Acto de Sucessão.
À luz de tudo isto é difícil compreender o lugar da Utopia de More na narrativa da vida do santo. A obra contém a apologia de muitas das doenças do mundo moderno (divórcio, comunismo, centralização estatal, eutanásia, uma concepção de que o homem pode distinguir automaticamente o certo do errado) como solução para a preservação da modéstia, da caridade e da paz. Infelizmente, estes elementos do Cristianismo são tomados (como lembra Voegelin na História das Ideias Políticas) como ideais ou valores, algo desligado da estrutura da realidade e um resultado da aceitação de um conflito entre Fé e Razão. A forma como More constrói a sua Utopia mostra como a transformação da fé em matéria privada seria uma solução para a obtenção do supremo valor da paz social. Ainda que não pretenda a eliminação do pecado ou a criação de uma nova natureza, a aceitação de um Estado que não replica a alma humana e a sua virtude (defendendo apenas um estado de coisas propício à paz social e a uma vida de respeito entre os seus membros) gera a situação condenada pela Igreja durante séculos de uma comunidade sem justiça, ou com uma justiça que não reflecte a transcendência.
Espero que a fraqueza da Utopia tenha sido suplantada pelo relutante martírio.
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