A Crise do Republicanismo
No seguimento do que escrevi para o Samuel, o Prof. Maltez acrescentou alguns pontos, não formulados em questões, mas que lançam a discussão para uma maior profundidade e para uma maior “resolução” (termo emprestado aos manuais de operação de televisores) do problema.
Das muitas portas que se abriram, selecciono (por ora) uma: a questão da acomodação da religião na Revolução e no pensamento moderno.
Há uns tempos, preparando mais um trabalho com saída garantida para as calendas gregas, andei a investigar as constituições europeias e a forma como estas se revestiam de diversos simbolismos religiosos. No meio de constituições fervorosamente laicas (de que a França é exemplo mais acabado), existem outras perigosamente religiosas (onde o político e o religioso são coincidentes ou a religioso é mero pretexto) e outras que nominalmente encontram um caminho aceitável para uma Justiça que transcende o político-jurídico. O que não consegui mesmo encontrar, e talvez por isso a Europa esteja mais unida do que se pensa (da Irlanda à Grécia), foi qualquer argumento extrínseco à política no seio da máquina política. Apesar da maioria das constituições europeias consagrarem uma fé como a principal do seu povo, essa fé (ou mesmo qualquer diálogo que a mesma possui com outras formas de pensar) torna-se irrelevante no contexto da definição da Justiça. Qualquer argumento que se esgrima no contexto do certo ou errado, do verdadeiro ou falso, é inapelavelmente traduzido no contexto político para uma linguagem subjectivista (como se fosse mero produto num mercado neutro) ou para uma forma onde se encontra desligada da sua formulação completa. Esta formulação é a evidente explicação do surgimento de neo-liberalismos (liberalismo sem jusnaturalismo), neoconservadorismos (reacção sem justificação transcendente ou extra-subjectiva), o renascer dos socialismos utópicos e o “engavetamento” de Marx… Mais grave, afirmar que o Povo assim quis, ou que a democracia assim decidiu, é um ponto final em qualquer discussão política, seja para um cidadão, para um governante ou para um juiz.
Em suma, a referência religiosa esconde uma vergonhosa ausência de referências fora da política, uma total arbitrariedade do poder e a incapacidade deste de aceitar qualquer lugar numa ordenação que não seja o de criador.
O meu problema com esta situação não é, correndo o risco de me repetir, a acomodação da religião no pensamento moderno (tem um papel subordinado, mas garantido), mas a total incapacidade do pensamento moderno para acomodar uma qualquer ordenação de justiça que não seja a vontade do legislador. É por isso que na Democracia nada há de Republicano e é, também, por essa razão que tanto os Estados Unidos da América como a República Federativa do Brasil, se transformaram no que assistimos no presente: sistemas em que a única substância pública é o carácter eminentemente privado da titularidade do Poder. Quem ousa dizer hoje nos EUA que a democracia ou o soberano popular não tem legitimidade para subverter os princípios que fundaram a América e que constituem o centro da sua própria concepção de justiça?
Sobre o Brasil e a sua transformação em Estado Socialista de assistentes sociais, experiências piloto, pleno de micro-religiosidades que em nada se distinguem da bruxaria (incapazes de qualquer finalidade que não seja a auto-satisfação individual e a auto-ajuda), a própria ideia de um povo que tudo aceita em troca de um pedaço de pão e de um subsídio, mostra bem quão longe estamos do republicano ponto-de-partida.
Tudo isto não é mais do que o grave falhanço do republicanismo moderno, onde de todas as construções políticas (espirituais) que esta incluía, só sobreviveu o carácter popular da soberania, depois da erosão das constituições, das instituições sociais e da transformação da religião em matéria privada.
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