terça-feira, julho 21, 2009

Em Verdade

A mais recente encíclica papal suscitou muita controvérsia e muitas tentativas de apropriação da direita e da esquerda. Os erros que são conhecidos a quem não tem uma fonte para o pensamento, os que não reconhecem a existência de normas acima de si próprios, são evidentes: a direita desprovida de quadros normativos aprecia no texto o apelo à libertação do Estado, ao fim das tarifas meramente proteccionistas, da defesa da propriedade, da economia local e comunitária, enquanto que a esquerda pula de felicidade pela crítica ao valor intrínseco do mercado, pela defesa dos direitos dos trabalhadores, pelas responsabilidades sociais das empresas.
Toda esta discussão é absolutamente indiferente, pela simples razão de que aquele que não parte da Mensagem não possui a mínima capacidade de apreciar o documento como explicação e proposta inspirada por Cristo.

Ainda assim ao cristão são permitidas todas as dúvidas que a boa-vontade permite e é nesse sentido que me permito a algumas interrogações sobre a Encíclica Caritas in Veritate e sobre o que não não é explícito ou dito.

Ao contrário do que algumas pessoas têm afirmado, o documento do Papa não é um ensaio utópico. Apesar de lidar com o “dever ser”, não é um ensaio sobre um percurso inescapável para a perfeição ou sobre a forma de ultrapassar o pecado ou a escassez. É apenas uma descrição do mundo contemporâneo e da forma como o relacionamento entre os homens deve ser feito, de forma a que o mecanicismo, a técnica, a vontade individual, o poder do homem pelo homem, não triunfem. Nesse sentido o importante não é a pobreza, a condição de escassez, mas a pobreza gerada por acções humanas deliberadas e pela forma como os homens se relacionam. E nesse seguimento as palavras do Papa ganham perfeito sentido no contexto de uma Amizade concreta, repleta de um significado maior que a mera relação entre vários seres, numa vivência perfeita do sentido da Criação entre os vários seres conscientes, que se condensa numa amizade que transcende a particularidade de cada um ou dos vários constituintes da comunidade.
Aqui surge um primeiro ponto. Das várias perspectivas sobre o “logos” surgem os vários “dia-logos” que permitem transcender a individualidade e compreender aquilo que é verdadeiramente Bom para permitir a percepção de um Bem Comum. A ideia é interessante e perspectiva a forma como a Verdade condiciona a própria esfera pública.
Mas, infelizmente, o diálogo onde não existe a premissa Deus e a premissa Cristo, não tem gerado qualquer forma de avanço na determinação de fundamentos morais, como observamos no caso do Direito Humano ao Aborto, no avançar do secularismo e da crença no direito absoluto à disposição de si, na estranha superstição de direitos sem origem e sem deveres. A ideia de que de um diálogo entre princípios diferentes pode gerar uma norma mais próxima do Bom, do que um conjunto de pessoas que reconhecem as afinidades na Verdade e nos princípios, é algo que não consigo simplesmente compreender.
O ponto que se segue é evidente. Sua Santidade menciona o processo de desenvolvimento e diálogo como forma de alcançar uma forma de Bem Comum global e explicitamente demonstra como este só pode ocorrer no seio de um processo de reconhecimento da Ordem da Criação (Natureza, Vida, Bem). O que não se consegue vislumbrar é a forma como tal processo pode decorrer sem primado Cristão. O mesmo acontece em relação à sociedade. É manifestamente impossível a instauração de um “mercado de amigos”, de empresas de responsabilidade social, num contexto onde não esteja definida uma forma de amizade concreta como forma de relacionamento comunitário. E no contexto liberal ou social-democrata, nenhuma forma de relacionamento que transcenda a materialidade é existente enquanto lugar extra-subjectivo. Se o mercado possui princípios normativos anteriores, por que razão não pode a democracia e a esfera pública partir da premissa cristã para um diálogo e mesmo para seleccionar os dialogantes?
Não consigo vislumbrar de que forma a ajuda ao desenvolvimento de países que recusam as próprias condicionantes da pensabilidade do Bem e a sua inserção na corrida tecnológica, podem ser observadas como uma dádiva que não constituiu dano ao “bem comum mundial”, nem como será possível e emergência do Bem ao munir de bens materiais (sem a reciprocidade da aceitação da Ordem) aqueles que se lhe opõem.