sexta-feira, outubro 31, 2008

A Visão de Soloviev e o Triunfo do Homem














Compreender a visão dos grandes pensadores sobre o futuro é um caminho perigoso. Para os “modernos”, com a sua crença de que o mundo será o que o dele o Homem fizer, a presciência dos sábios é um passe de mágica. Como a estrutura da Natureza Humana é, segundo a fórmula moderna, um elemento em aberto e não uma norma inscrita na realidade humana, o que quer que o filósofo (ou alguém até menos credenciado) coloque nas finalidades humanas e no seu destino terreno, funcionará sempre como destino da Humanidade.
Por isso, figuras como Edmund Burke e a sua previsão do Terror revolucionário, Donoso Cortés e a sua compreensão da emergência das ditaduras do século XX, ou Vladimir Soloviev e a sua visão da destruição da Europa, parecem ao leitor moderno um acesso de sorte, um truque ou um conhecimento mágico, digna dos dotes divinatórios de Nostradamus.

A reflexão de Soloviev não vem, porém, da observação do vôo das aves ou das entranhas dos animais, mas de uma visão profunda da natureza humana, das suas limitações e tentações essenciais, da forma como o Homem se articula perante as suas finalidades e como estas são ditadas pelos “amores” que lhe são peculiares.
É da metátese do “o amor de si próprio” do Homem, , que emerge a destruição da Humanidade. Em “Breve Conto sobre o Anticristo[1]”, Soloviev descreve, mais do que a História do século que o seguiria (nascido em 1853, viria a falecer em 1900) em algum pormenor, a doença espiritual que viria a atormentar o Ocidente e a alma do mundo Cristão.

Nascido dos Nacionalismos do século XIX e das suas obsessões políticas, as ideias políticas que viriam a destruir a Europa seriam projectos de poder megalómanos e vazios. Unidos por elementos raciais e por ódios e vinganças, os povos lançam-se numa luta pelo predomínio mundial. As novas ideias, juntamente com os exércitos vindos do Oriente, conquistam a Alemanha e obrigam-na a uma rendição desonrosa que as outras potências europeias aproveitam para predar. Os “trabalhadores sem-pátria” da Europa franqueiam a entrada aos invasores, minando a resistência dos povos e aclamando o inimigo oriental. De todos estes tumultos emergem os Estados Unidos da Europa, subjugando o poder dos Estados até aí independentes, em prol de um desenvolvimentismo materialista. Todas as ideias de Deus são afastadas do ensino e da cultura e a maioria dos habitantes desta Europa Unida, uma obra da Irmandade dos Pedreiros Livres, aderem à descrença religiosa.
Da insatisfação com o vazio materialista do século XX cresce, nalgumas franjas da sociedade, um sentimento espiritualista. O século XXI assiste ao nascimento de um sábio, um moralista, um homem de fé, famoso ainda na juventude.

Nasce desta forma, recta e bem-intencionada, a forma humana do Mal, apenas adulterada por um amor-de-si que não encontra limites. A “Revolta Egofânica”, a sobreposição do Eu à ordem das coisas, descrita por Voegelin, atinge no pensamento do grande espiritualista o apogeu [2]. O Anticristo é criador de ideologia, considerando-se capaz de, por si próprio, não apenas de determinar o certo e o errado, mas transcender essa dicotomia. A similitude da posição do Anticristo com a posição de Marx é evidente, postulando uma nova justiça determinada pela necessidade e não pelo merecimento e proclamando uma nova paz trazida pelo fim dos problemas da escassez [3]. Justiça e injustiça deixam de fazer sentido, porque a norma e a magia trazidas pelo Anticristo, ao dar a cada um o que precisa, destroem a necessidade de conflito e permitem ao indivíduo que aceite o domínio dessa norma, a completa disposição de si próprio[4]. Liberdade, para além do bem e do mal – o sonho da Modernidade.

O poder do homem tornado Deus é aclamado pelo Mundo. O Anticristo de Soloviev recebe o apoio de largos sectores da Igreja, no seu desejo de conseguir o bem-estar dos homens e a paz universal, num mundo que havia assistido à sua completa destruição pelas guerra. Com esse fim e com a população mundial do seu lado, o Anticristo decide convocar um concílio ecuménico como complemento final do seu reformismo social e como elemento final na obtenção de uma ordem universal. As várias denominações Cristãs, exauridas por décadas de antropocentrismo e materialismo, encontram-se então numa posição de grande fragilidade. O Anticristo, agora tornado Imperador do Mundo, chama-os para receber destes um acto de submissão final, através de três tentações.

Pede então aos membros da Igreja Católica que aceitam o seu poder e protecção e em troca da restituição dos seus antigos privilégios, que passem para o seu lado do concílio.
A grande parte dos “príncipes” da Igreja acedem prontamente ao pedido do Imperador, louvando Deus. O Papa Pedro II permanece inamovível.
Pede também aos representantes da Igreja Ortodoxa que se submetam à sua autoridade, em troca da criação de museus e da preservação iconográfica dos elementos da tradição Cristã oriental. O Ancião João, o mais antigo dos representantes ortodoxos, permanece também inamovível aos pedidos do Anticristo e ao ver os seus correligionários passar para a tribuna imperial, junta-se ao Papa Pedro.
Por fim pede aos Protestantes, entre os quais o Anticristo Superhomem se contava enquanto académico, que se juntem a si, oferecendo um estipêndio gigantesco para a promoção científica do livre-exame das Escrituras. A debandada é, também, geral, à excepção de algumas pessoas em torno do Professor Pauli, um eminente evangélico que, da mesma maneira, se junta ao Papa Pedro e ao Ancião João.
Os Cristãos que resistem às tentações têm apenas um pedido a ver satifeito. Que Imperador que este se submeta a Cristo, como forma de obter a sua obediência[5].

O diagnóstico de Soloviev, apesar de realizado no século XIX, é perfeitamente actual.
Quando observamos membros da Igreja afirmar que a grande virtude da Mensagem Cristã é a sua aplicabilidade à reforma social, à vida moderna, à economia de mercado, não é difícil perceber a submissão de Cristo ao poder temporal e seus propósitos.
O mesmo se passa em relação ao ritualismo da Igreja Ortodoxa, tantas vezes sobreposto à Doutrina e, de forma similar, à Fé na racionalidade humana elevada à divindade pela forma protestante.
Se ao Cristianismo é retirado Cristo, o pensamento e o ensinamento moral transforma-se numa massa informe, numa força pronta a servir toda a finalidade humana, mesmo a inconfessável de tranformar o homem em criador e razão de todo o universo. Caída essa barreira, só a vontade humana nos impede de coabitar com Deuses e Super-homens, de erguer templos a líderes políticos como acontece em alguns países do antigo Bloco Soviético, ou de voltar à submissão incondicional ao domínio político do Totalitarismo. E a vontade humana nunca foi barreira, onde não existiram as grandes constrições morais de que a civilização é composta...

O Cristianismo sem Cristo tem de ser questionado. Os seus apologistas defendem os “valores” semelhantes aos da mensagem Cristã, mas acreditam que o Homem pode a eles chegar através da razão. Sabendo que todos chegamos a conclusões diferentes e sem a existência de um “ideal” extra-humano como referencial, como poderemos saber se o Homem atingiu esses princípios, ou se ele próprio não criou esses valores ou um simulacro dos mesmos para servir os seus próprios interesses?

O Conto do Anticristo de Soloviev pode ser interpretado como uma profecia. Mas o seu enorme apelo consiste, sobretudo, na forma como é interpretado o espírito humano, elevado e leal ou cego e virado sobre si mesmo. Disposto a perder a sua liberdade, a possibilidade de existir segundo uma ordem que não depende dos homens, em favor da sua vaidade, sendo ele próprio o criador de Ordem através da sua vontade, o Homem Moderno sacrifica-se perante a magia (aquilo que não compreende, mas que vai no sentido do que deseja do mundo) do bem-estar e do progresso. É muito mais do que uma profecia (apesar da quantidade de elementos históricos previstos por Soloviev), mas uma análise detalhada sobre as condições, humanas e espirituais, para a existência de uma comunidade livre.

Quando os Cristãos remanescentes recusam a submissão ao Imperador são humilhados pelos poderes do Mundo e pelos “princípes” da Igreja agora submetidos ao Poder Humano. A magia de Apollonius, o mago do Imperador, mata o Papa e o Ancião. Os Cristãos remanescentes das várias denominações saem da cidade, levando consigo a Nova Arca da Aliança, os corpos dos que recusaram renegar Cristo.
Pouco tempo depois o Mundo resolver-se-ia e a Humanidade reerguer-se-ia pelo reconhecimento da sua natureza de criatura.





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[1] Pode ser encontrada uma versão em língua inglesa em
http://forum.gorillamask.net/archive/index.php/t-55805.html

[2] “Conscious of the great power of spirit in himself, he was always a confirmed spiritualist, and his clear intellect always showed him the truth of what one should believe in: the good, God, and the Messiah. In these he believed, but he loved only himself. He believed in God, but in the depths of his soul he involuntarily and unconsciously preferred himself. He believed in Good, but the All Seeing Eye of the Eternal knew that this man would bow down before the power of Evil as soon as it would offer him a bribe -- not by deception of the senses and the lower passions, not even by the superior bait of power, but only by his own immeasurable self-love.”
[3] «As a moralist, Christ divided humanity by the notion of good and evil. I shall unite it by benefits which are as much needed by good as by evil people. I shall be the true representative of that God who makes his sun to shine upon the good and the evil alike, and who makes the rain to fall upon the just and the unjust. Christ brought the sword; I shall bring peace. Christ threatened the earth with the Day of Judgment. But I shall be the last judge, and my judgment will be not only that of justice but also that of mercy. The justice that will be meted out in my sentences will not be a retributive justice but a distributive one. I shall judge each person according to his deserts, and shall give everybody what he needs."»

[4] ”Christ brought the sword; I shall bring peace.”

[5] “At this, Elder John rose up like a white candle and answered quietly: "Great sovereign! What we value most in Christianity is Christ himself -- in his person. All comes from him, for we know that in him dwells all fullness of the Godhead bodily. We are ready, sire, to accept any gift from you, if only we recognize the holy hand of Christ in your generosity. Our candid answer to your question, what can you do for us, is this: Confess now and before us the name of Jesus Christ, the Son of God, who came in the flesh, rose, and who will come again -- Confess his name, and we will accept you with love as the true forerunner of his second glorious coming."

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