segunda-feira, dezembro 03, 2007

A Vingança da Suburbanidade












A SIC mostrou uma peça sobre a Dona Maria da Conceição Rita e a sua relação com Salazar, tentando, alegadamente, mostrar Salazar na intimidade, através da relação pessoal com aqueles que se tornaram a sua família afectiva. Não vale sequer a pena aprofundar a condescendência com que todo o trabalho é realizado, mostrando a entrevistada como elemento parcial na História de Portugal por ter privado com Salazar, o que a impediria de ter uma visão objectiva. Resta saber se numa democracia não somos todos parciais... Mais uma pergunta que fica por responder.
Ressalta a olho nú o “mantra” incessante do provincianismo de Salazar. O suburbano não perdoa que um governante lhe seja superior. Fosse Salazar um daqueles anti-democratas como Fidel ou Ceaucescu, que viveram vidas sumptuosas às custas do erário e teria a simpatia da jornalista e da audiência média da SIC. Salazar, porém, recusou a vida de ostentação, que é o anseio de todo o aspirante a burguês. Não obteve por isso o título de “urbano”, recebendo o seu desprezo.
Notável a forma como a austeridade e a poupança são classificadas como características provincianas. Não se percebe se, num país que era pobre, se pedia que houvesse fausto, que a economia doméstica não fosse rigorosamente controlada, que o chefe-de-governo não cumprisse os sacrifícios que pedia aos governados. Menos ainda se percebe a crítica numa sociedade industrializada e moderna, em que somos massacrados com mensagens de poupança de recursos para juntar papelinhos, plásticos e vidrinhos nas nossas casas. No Portugal de Salazar poupava-se, e Salazar poupava, para viver com o que se era capaz de produzir e comprar. Hoje anda tudo à cata de papelinhos e garrafas de plástico para ajudar o ambiente (essa tão compreensível entidade). O que ninguém imagina é qualquer um dos nossos governantes a separar o seu lixinho. Têm chefes na medida das suas almas...
De grande interesse sociológico foi a forma como a jornalista Boavida (nem de propósito se lhe arranjava um nome destes) se referia ao governante como “o Salazar”. A senhora jornalista não tem culpa de não ter sido educada. Se o tivesse sido, saberia que quando se trabalha em jornalismo ou qualquer parte da vida pública, não são “doutores” os de quem se gosta e “os” os de que se não gosta. A educação comporta um conjunto de valores que lhe são arbitrários, especialmente perante as pessoas mais velhas. Gostaria de ver a jornalista a entrevistar alguém daquela família obesa do Campo Grande e questionando “O Soares era afectuoso consigo?”. A boa educação selectiva é mais uma daquelas características-tipo da superioridade que o suburbano considera ter em relação aos seus avós que andavam a esgravatar a terra.
Os avós não sabiam o que era uma hemorragia. Os netos que já vivem nos subúrbios acham-se superiores e dizem, numa peça jornalística para todo o país, que Salazar sofreu uma “hemorregia”. Os avós trabalhavam com afinco e seriedade. Eles enviam para o ar leituras de poemas em que faltam versos.
É o jornalismo direccionado pela ideologia no seu esplendor, que já rendeu à senhora jornalista prémios por suscitar tolerância, mas não pela arte de noticiar a verdade.
Calculo que venha aí mais um prémio a caminho, porque estes ganham sempre.

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