quarta-feira, maio 10, 2006

Representação Existencial














Cada vez que um monárquico fala sobre a República vem à tona a questão da representatividade. Releio Mário Saraiva nas suas “Razões Reais” e vejo que a forma como a questão é dirigida em termos pouco próprios para a Monarquia Portuguesa.
A questão da não-electividade é fundamental na Representação. Ela é, contudo, apenas uma face escondida de uma concepção superior. Os neo-integralistas tomam a a não-electividade como sinónimo de representação da população, como se o facto de uma legislatura não ser electiva significasse independência. Pode ser que sim... mas representará Justiça? É evidente que uma pessoa de má-indole, julgando um caso em que não possui ligação com as partes, actua com a máxima independência! É também evidente que o julgamento reflectirá os vícios de seu carácter (a cobardia, a avareza, a inveja). É por essa razão que é absolutamente insuficiente afirmar que que a independência significa justiça. Até porque esta existência institucional é a de um Procurador Público e não de um Rei...
Não haveria razão, então, para não cobrir o Dr. Mário Soares ou o Dr. Cavaco Silva de honrarias e de bens que os tornassem homens independentes! Assunto resolvido.

A Representação é mais profunda que isso, porque reflecte o Ser dos Povos.
Quando falamos de Monarquia (arrisco a expressão Europeia, devendo o termo correcto ser Cristã) estamos a falar de uma instituição que é o garante da Identidade, do Ser, de cada comunidade política. Não são fados e guitarradas, que isso são expressões decorrentes do Ser e não o Ser. É a forma relacional com o imanente e o transcendente contribuem para a Forma.
O problema da Monarquia e da Democracia residem, afinal, nesse ponto central.
Imaginar uma Monarquia em que o Rei devolve os poderes à sociedade, eximindo-se das suas responsabilidades, é uma abjecta forma de se tornar uma mera figura decorativa e, mais grave, abandonar o Povo à sua sorte.
Imaginemos um referendo para a legalização do homicídio de crianças até ao primeiro ano de idade[1].
Pode o Rei voluntariamente deixar às vontades dos indivíduos tal decisão?
É óbvio que não, uma vez que faz parte das suas irrevogáveis obrigações a manutenção da Constituição Verdadeira. É essa Constituição que é a sua força, constituíndo-se como a verdadeira essência da Instituição, por três razões:
Porque a Tradição é o sustentáculo do Rei e da Nação, porque a única independência desejável é a Justiça, porque não é a vontade o horizonte máximo da acção humana. Sendo as três questões um e o mesmo problema, precisam de um enquadramento específico.

O Rei não é um déspota, sendo essa a diferença para o despotismo a salvaguarda de um conjunto de elementos que se encontram acima da sua vontade. Nesse ponto é evidente que existe uma Politeia, diria uma Monarquia Republicana o Professor Adelino Maltez, na sua paixão por aparentes contra-sensos. Acrescento eu que não há Monarquia Portuguesa sem Constituição[2]. A contradição verifica-se, não na terminologia, mas na interpretação dos significados. A Constituição na sua forma Moderna é a antítese da Politeia (ou República, ou Regime Constitucional), devido ao seu carácter democrático, onde todos os aspectos da sociedade são negociáveis e estão submetidos ao poder da multidão[3].
Várias formas emergiram ao longo dos tempos significando o conjunto de obrigações do Rei perante elementos que lhe são superiores. Deus e a necessidade da concepção de justiça cristã[4], e a Pátria (ou Nação) como conjunto de elementos constituintes das obrigações políticas dos vários povos e comunidades (Foros), condensando-se numa entidade propriamente política[5]. Dessas obrigações não pode o Rei prescindir, sob pena de integrar as fileiras de um “despotismo” mais ou menos “iluminado”, momento histórico em que os grandes pensadores monárquicos se moveram contra o poder real em defesa da verdadeira Constituição[6].
Contrariando esta obrigação, por omissão ou por concordância expressa com a turba, o Rei não cumpre a sua função essencial...

Vê-se, desta forma, que o segundo ponto é fundamental. A tradição é o elemento que enquadra a existência de qualquer homem no seu meio e é o ponto de partida da comunidade política. Os homens, as famílias e as comunidades políticas não são criados ex nihilo segundo o mando dos que crêem possuír uma meta-visão, o cosmopolitismo. Não se encontram livres em sentido hobbesiano, rousseauniano ou lockeano para recrear a sociedade segundo os seus desejos ou impressões, como era o caso dos comunistas, dos pós-modernos e, ao que parece agora, de alguns neo-portugueses[7].
Contra o despotismo da Vontade, Régia ou Popular, a Instituição Real encontra-se imersa num conjunto de obrigações, naturais e positivas, das quais não pode prescindir. Sem elas ou não é Monarquia (porque subordinada ao poder dos Muitos), ou não é Portuguesa (por se encontrar ab soluta das obrigações que constituem o seu próprio ser.

Também por esta razão se demonstra que nada é mais estranho à concepção portuguesa da Instituição que a electividade ou a ideia de que o Povo escolhe, em determinadas situações, o seu Rei, como muitos neo-monárquicos querem fazer crer[8]. Escravo da Vontade Popular o Soberano estaria limitado em sua acção pelos desejos do Verdadeiro Soberano que o colocou no trono.
O que parece ser uma eterna contradição e dilema da Monarquia, visto que todos os Reis legítimos provém, num momento ou outro, de Cortes, não o é!
O Povo não escolhe ou elege o seu Soberano! Encontra-o.
A vontade não desempenha o papel preponderante nesta acção, uma vez que, quando legítima, a acção Nacional não representa senão o respeito pelas Leis Constitucionais da Comunidade Política, tanto em matéria sucessória, como nas limitações elementares para a escolha, como na salvaguarda da Tradição.
Adequar o desejo à Norma que é o Bem da comunidade.

O ardil da posição de Mário Saraiva é a sua maior fraqueza. Defendendo que o fundamento da Monarquia é a forma como esta significa várias coisas ao longo do tempo, Saraiva retira à Monarquia Portuguesa a sua essência! Daí a tornar-se uma monoarquia ao estilo do III Reich ou uma Monarquia Comunista à cambodjana ou a uma hereditariedade presidencial cromwelliana, vai o pequeno passo da vontade popular...
Assim a monarquia não defenderia a Identidade Portuguesa, sendo um fim em si mesmo, a que todas as realidades, mesmo as mais elevadas, se sacrificariam[9].

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[1] As alegações deixo-as à vossa imaginação ou aos livros de Peter Singer.

[2] Aristóteles estabelece na Política uma definição clara de Regime Constitucional ou Politeia. Um regime de leis, em que apesar da não existência de um soberano (o termo é por mim empregue em sentido demasiado laço) que não a comunidade política, os elementos fundamentadores da sociedade são preservados.

[3] Política de Aristóteles I. 7.

[4] A menos que alguém um dia o “aggiornamento” nos leve a um Integralismo Lusitano ou Monarquismo de feição islâmica.

[5] Autárcica e com o objectivo de prosseguir o seu Bem Comum.

[6] A defesa da Tradição orgânica é ponto central de enorme parte do conservadorismo-tradicionalismo, seja na oposição ao Atomismo, à Sociedade de Massas, ao Igualitarismo. Ela é património essencial do Integralismo, a que muitos tendem a "virar a cara".

[7] Já ouço ao longe as palavras “inquisição”, “ortodoxia” e “fascismo”, congregadas na melopeia costumeira.

[8] O erro não é novo e foi descrito e refutado por Burke no início das Reflexões. Em Portugal temos alguns defensores deste erro, como é o caso da AMT (talvez a associação menos monárquica e menos tradicionalista da História de Portugal) do Professor Cardoso da Silva.

[9] É a esse aventureirismo pseudo-monárquico que me referia no último parágrafo do texto anterior.

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