quinta-feira, novembro 03, 2005

O Dito Fundamentalismo Cristão

Acho sempre interessante a forma como se retratam os tradicionalistas nos segmentos liberais da nossa direita. É de facto revelador da estrutura mental da “direita acidental” a forma como são retratados todos os que não pertencem à família politicamente correcta da pós-modernidade.
Ontem queixava-se um amigo da dita “direita” que os tradicionalistas estariam muito perto de posições teocráticas e seriam pouco mais que uns talibãs ocidentais.

Sempre achei o argumento bastante curioso, até pela recorrência com que a encontramos nos mais diversos “salões” culturais. Apesar de ser um argumento inválido, a ideia é bastante apelativa à mentalidade mais situacionista[1].
O erro na análise da pespectiva cristã (católica) deve-se ao pendor positivista na ciência política, na redução da ciência ao “palpável”[2], que destruiu a filosofia e o conhecimento do Bem (ou das directrizes de uma sociedade) em prol de concepções weberianas de Poder. A suposta neutralidade da ciência política weberiana traduz-se numa incapacidade de aferir a logicidade dos argumentos. Tudo é igual. À política concerne o estudo do Poder em vez da estrutra filosófica que o subjaz. Sobre essa matéria há apenas silêncio.

Essa destruição do pensamento estrutural tem levado a uma incapacidade de projecção do pensamento tradicional. A frequência com que se observam comentadores americanos insultar Pat Buchanan afirmando que este defende o estabelecimento de uma Teocracia tornou-se habitual. É a incapacidade ignorante dos que desconhecem como concepção fundamental do Cristianismo a existência de duas esferas interdependentes, política e religiosa. Digo interdependentes porque não existem esferas independentes. A existência de diferentes esferas da acção é assim uma salvaguarda da própria forma de vida cristã.
A política tem como objecto a realização da Natureza Humana, encontrar a vida colectiva (por norma política ou moral) que realize perfeitamente[3] essa sociedade. Isto não significa (pelo contrário) que o Cristianismo tenha uma tendência imanentista. O Homem é um ser incompleto, por natureza. Não tem, por isso, conhecimento absoluto da natureza das coisas. Essa incompletude é traço marcante do nosso ser e do nosso mundo. Por isso é que para um Cristão (católico, como já disse) a tentativa de mover uma guerra ao Pecado é um pecado contra-natura. Tanto os calvinistas, como os puritanos, como os modernos (subprodutos desta revolução gnóstica-reformista) insistiram na guerra contra um traço permanente da humanidade. Lançaram-se na guerra contra o Homem por visarem e acreditarem que a incompletude da sua existência poderia ser resolvida através da vontade colectiva (Rousseau e Herder), da racionalidade (Kant e Marx) ou pela irracionalidade (Nietzsche e o Hitlerismo).
O Cristianismo não pode deixar de repudiar todas estas concepções, uma vez que estas violam a essência do conjunto de crenças em que este se baseia. Repudia essa tentativa de destruír o pecado. Tenta reprimir o pecado que impossibilita a vida da comunidade e a consecução das suas finalidades, mas não tenta realizar uma formatação do Homem à imagem dos anjos, não tenta criar o paraíso terrestre quer pela eliminação da existência de pecado, quer pela ideia de que tudo é pecado (ver Voegelin, The New Science of Politics) .
O homem é perfectível, mas incapaz de ser perfeito.

Por isso são, como sempre, inestimáveis os contributos do Aquinense.
A política lida com a virtude, mas deve preocupar-se com as virtudes políticas que possibilitam o Bem Comum. O Estado deve consagrar a prossecução de finalidades cristãs, mas nunca se constituir como fonte de espiritualidade, ou como parte da Igreja. A autoridade política não é religiosa, embora os seus fins tenham de ser a realização do Espírito e estejam, por isso, intrinsecamente ligados à comunidade de crenças. Só através dela se poderá compreender o lugar do Homem na ordem das coisas...
E para que o sujeito se englobe neste Bem Comum não é necessário que seja Cristão, basta apenas que se considere mais um elo numa cadeia de gerações que engloba passado e futuro, a que chamamos Nação.


[1] O culto da moderação é uma das marcas principais das nossas sociedades. Mais interessante por não possuír uma estrutura analítica que permita aferir onde está o “justo meio”, calculando assim os extremismos exagerados...

[2] Ainda estarei para saber de que forma é que o Bem Comum é algo de etéreo e a vontade individual é tangível.

[3] Entenda-se “perfeitamente” no sentido de completude. A doutrina aristotélica coloca a realização política como suprema por ser ela a mais elevada expressão de um colectivo, unido num poder através de vínculos espirituais de amizade política.

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