quarta-feira, março 16, 2005

Burke e a Democracia

Hoje em dia existe muita gente a utilizar Edmund Burke para justificar as suas teorias.
Os neo-conservadores prosseguem a utilização utilitária derivada dos liberais vitorianos. Defendem que a oposição de Burke à abstracção é um ódio ao constructivismo social, uma defesa do material contra o espiritual, um manifesto de cepticismo (ao estilo da escola escocesa) contra a especulação e a realidade espiritual, a defesa última da Liberdade.
Todos estes aspectos estão de facto presentes na obra de Burke. O problema está em compreender as críticas de Burke em algo mais do que o sentido que elas têm nos nossos dias.

Burke odiava, sem dúvida, a especulação filosófica revolucionária (aquilo a que podemos certamente chamar de Filosofia Moderna). Aponta a esta uma tentativa de recriar o Homem, uma insoburdinação a elementos externos, um método filosófico insano. No fundo estas três críticas são a mesma crítica (que Burke observa como originadas na filosofia de Rousseau).
Rousseau baseia-se num sistema “voluntarista”. Em Rousseau o indivíduo livre devê-lo-á ser através de uma libertação do passado. Só a sua vontade existe… tudo o que não fôr vontade (individual ou colectiva) é ilegítimo. Burke opõe-se frontalmente a esta visão. Demonstra pela evidência filosófica, histórica e política a forma como só aceitando o ónus do passado (só através da tradição) se pode o Homem afirmar como livre. Essa liberdade provém da existência de um referencial passado onde é aceite (como numa herança) os encargos, responsabilidades e proventos dessas acções e acontecimentos que não dependem da nossa acção.
As implicações desta reflexão são profundas e deixaram marcas na politologia ocidental.
O homem que só se encontra subordinado à sua vontade (ou à doutrém) não tem capacidade de avaliar ou estabelecer um “dever ser”[1] se encontra encerrado na escravatura das coisas como são[2]. Essa é a segunda onda do flagelo Moderno, como aponta Leo Strauss em “The Three Waves of Modernity”.

A denúncia de Burke em relação ao método filosófico revolucionário não se trata de uma fervorosa cruzada contra a filosofia (como quiseram fazer ver os utilitários-conservadores). Trata-se do erro filosófico que mencionámos anteriormente.
A denúncia de Burke investe sobre a filosofia apriorística. A filosofia de Rousseau (que foi prosseguida por todos os modernos desde comunistas a nazis, de liberais aos pragmatistas americanos) ao fundar-se na vontade e não no “dever”. Assim, os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade não são defendidos como tendo origem numa ordem superior (o papel da religião estabelecida é fulcral, quase como depositária da Tradição e da Ordem), mas como desejo humano[3]. Isto revela que existe uma predisposição para a prossecução desses fins. Eles não são compreendidos, mas pré-determinados, o que constitui uma verdadeira imposição e determinação de toda a estrutura social.
Ao opor-se a esta visão igualitária e a esta metafísica fundamentada num apriorismo infundado, Burke afirma-se como o grande opositor da ideia moderna de reinvenção da sociedade segundo esse paradigma. Como Burke bem enfatiza a propósito das políticas imperiais na Índia, o objectivo da Coroa Britânica deve ser a salvaguarda das estruturas locais e originais de Poder e não a reconstrução, segundo a “metafísica imprudente”, das comunidades do Império.

Os neo-conservadores recuperam Burke, mas um Burke amputado. Tomam a doutrina de Burke como alheia à sua posição filosófica primordial. Como se as posições anti-revolucionárias do irlandês fossem passíveis de transplantar para defender as posições democráticas e as doutrinas de Direitos Humanos que Burke tentava denunciar. Tentam colar as posições de Burke a uma concepção de “Paz Perpétua” democrática a que Burke se referiu muitas vezes como a mais grave ameaça à comunidade cristã de países da Europa[4].

Pegar na doutrina que Burke considerava mais perigosa para a Humanidade e torná-lo o defensor da mesma, sob a pretensa ideia de que Burke era um situacionista, que não era mais do que um defensor do “establishment”, é uma concepção que não se sustenta[5].
Aproveitar algumas concepções cépticas de Burke e torná-lo num David Hume é desonesto[6].
Justificar uma restruturação do Mundo sob as doutrinas abstractas dos Direitos Humanos, uma cruzada destruidora das várias narrativas histórico-tradicionais em prol de uma concepção autonomista de liberdade e afirmar de que se defende o legado de Burke é um aproveitamento ilegítimo da obra do autor.


[1] É o “dever ser” a principal característica da filosofia moral ocidental. É ela que permite a destrinça entre a “doxa” do sofista e a “sophia” filosófica.
[2] Trave-mestra do pensamento politológico de Eric Voegelin e das suas reflexões sobre o Totalitarismo e as Religiões Políticas Intramundanas.
[3] Só posteriormente, em Paine e Condorcet, foi passada a religião secular pela elaboração das teorias deístas-racionalistas dos Direitos Humanos.
[4] Nos escritos posteriores às Reflexões, em particular nas “Letters on a Regicide Peace”.
[5] Porque ignora os escritos contra-revolucionários pós 1789.
[6] Ignorando a crítica que Burke faz a Hume em 1791.

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