domingo, janeiro 03, 2010

Lutar pelo Amor em 2010

Estou consciente de que o título anterior poderia encimar uma qualquer obra de fusão entre Danielle Steele e Arthur C. Clarke. Ainda assim, creio que o desafio do ano em que agora estamos será precisamente esse e que o este título dificilmente se aplicará de forma tão precisa a outro tempo e outra circunstância.
O problema com que lidamos foi sintetizado numa afirmação pela deputada Marta Rebelo num programa sobre o divórcio. Dizia que nenhuma sociedade saudável deveria permitir que duas pessoas que não se amam pudessem manter-se casadas, chegando mesmo a perguntar qual dos restantes representantes dos grupos parlamentares se oporia a este princípio. O silêncio do outro lado do espectro político demonstrou a qualidade argumentativa e a ausência de fundamentos da direita. Adiante.
A ideia desenvolvida pela deputada do PS é um lugar-comum, mas não por isso uma ideia desprovida de riqueza conceptual. Encerra em si as confusões típicas do nosso tempo e um processo de erosão do conceito de amor que interessa compreender.
Falar de amor como algo que vai e vem, um sentimento ou uma emoção provocada pelo outro é o contrário do seu significado mais profundo. Gostaria de saber o que a senhora deputada acharia se, numa conversa com Adolf Hitler, este lhe confessasse a perda do seu sentimento de amor pela Humanidade... Seria essa emoção e a sua insondabilidade um dogma que a ninguém compete questionar? Resumindo, o que é que é preciso para que a relação de Amor entre duas pessoas seja encarada como uma mera questão privada, sendo os mesmos intérpretes e juízes únicos dos laços que unem os dois seres?
Obviamente que a transformação do laço de Amor numa emoção e o facto desta degeneração se dever à afirmação de um sistema que recusa o carácter transcendente do Amor, é um ponto de partida. Mas esta concepção secularizada ou materialista de amor não explica todo o fenómeno. A transformação do Amor numa matéria contratual, ainda guardava a possibilidade das obrigações contratuais e suas quebras serem dirimidas pelo Estado. Este amor, sucedâneo cristão, mas desprovido do seu carácter transcendente (adquiriu como finalidades a manutenção das estruturas sociais e a saúde do Estado), perde o lugar para a ideia de que já nem as finalidades biológicas que sustentam a Sociedade e o Estado têm carácter autoritário, e que cabe ao indivíduo o poder soberano de determinar por completo a forma como se relaciona com os demais, podendo o mesmo determinar o que é o contrato de amor (o Casamento) e quais as obrigações que este comporta.
Este é um erro evidente de uma perspectiva de que pretende ser pós-moderna. A possibilidade de o indivíduo ou a democracia disporem do sentido do contrato de casamento para determinar o que é o Amor na sua forma legalmente reconhecida, esconde a realidade muito sombria de que, pelo mesmo raciocínio, o casamento pode deixar de ter como substância uma relação positiva (um sentimento bom) e adquirir um significado desligado dessa benevolência. Os sócios de um clube, os funcionários de uma empresa, as pessoas que vão fazer uma viagem, ou até mesmo pessoas que não se conhecem de lado algum, podem casar-se, dado que a insondabilidade das suas relações pessoais e a obrigatoriedade do Estado em reconhecer o significado para o indivíduo destas, assim o permite e reconhece socialmente. Daí a termos contratos de servidão voluntária ou de canibalismo, sob as vestes de insondabilidade dos afectos e da obrigação do seu reconhecimento pelo Estado, não vai distância nenhuma, dado que ao se aceitar a premissa do amor libertário, se aceita a insondabilidade da vontade individual e o seu carácter primacial.
Quando o Miguel CB escreve que “Era o que falatava o Estado legislar sobre o amor e a felicidade”, é caso para perguntar se pode fazer alguma coisa que não isso...
Mais importante do que a luta contra um casamento que tem o sentido que a democracia lhe quiser dar, é a luta pela refundamentação do Amor segundo um paradigma não contratual-biológico e socialmente orientado. A primeira é crítica a segunda é fundamento.