terça-feira, setembro 06, 2005

A Tocha








O nosso amigo Paulo Cunha Porto levantou neste espaço uma reflexão sobre o Conservative Party. Eu confesso que tenho alguma simpatia por certas formas de Toryism, apesar de muitos problemas teóricos e morais que levanta.
O conservadorismo britânico tem por tradição ser o “saco de gatos” que referido pelo Paulo, possuindo no seu seio influências que vêm desde os “royalists”, movidos por um espírito cego de obediência ao positivado, dos liberais-tradicionalistas, defensores das liberdades tradicionais instituídas, do One Nation Conservatism, pragmatismo proto-social-democrático gerador do centralismo estatolátrico que se vive “nas ilhas”, dos liberais vitorianos, sempre munidos de gráficos e estudos que calculam o bem-estar das populações, ignorando toda e qualquer noção imaterial de justiça ou moral, e dos liberais clássicos que consideram que os indivíduos devem viver em “bolhas”, numa vida formatada apenas por seus alvitres.
Como a política se acha sempre superior à theoria, os argumentos deram uma grande volta, acabando por permanecer tudo na mesma.
O argumento utilitarista por prosseguir o “caminho americano” tornando-se “progressismo social”, numa ordem social liberal justificada por uma crença na eficiência de mercado e das vontades individuais, fundindo-se à moda de J.S. Mill. Estas concepções “centristas” do Partido, incorporadas nos dois principais candidatos Ken Clarke e David Davies, são parte do “mainstream” retórico do inglês médio e portanto as mais fortes eleitoralmente. São duas faces de uma mesma moeda, com a diferença diminuta de um apelo mais europeísta no caso de Clarke, mais soberanista no caso de Davies. Como dizia o nosso amigo Miguel há pouco tempo, os ingleses estão cada vez mais parecidos com os americanos. Estes candidatos poderiam bem ser candidatos americanos à Presidência que ninguém notaria a diferença.
O mesmo utilitarismo que reveste o progressismo liberal tem, sob a capa maquiavélica de Disraeli e do One Nation Conservatism, uma outra face. Vendo a impossibilidade de atacar a “máquina” estatizante socialista funda-se como uma alternativa socialista, emotivista e laica. Este é o segmento que recupera a grande porção de sectários do “partido” que privilegiou o grupo acima dos princípios que o grupo deveria defender, que preferiu desvirtuar o Partido Conservador do século XIX, tornando-o um “partido popular” com intuito de sobreviver à crise eleitoral vivida nesse século. O Poder pelo Poder que, como vimos, esteve na génese do “royalism” e do sectarismo realista moderno aliando-se ao “centrão” numa armadilha eleitoral de pouco conteúdo.
Provém desse movimento a enorme confusão discursiva do conservadorismo contemporâneo. Não se afirma liberal ou comunitarista, nem age segundo um desses princípios. É certo que no mundo das eleições tal definição seria suicida, mas seria fundamental que debaixo dessa indefinição retórica se observasse uma acção concreta e direccionada. Assim se torna compreensível o apelo de Malcolm Rifkind ao legado social-democrata de Disraeli e a vontade descentralizar o sistema, de regressar às liberdades tradicionais e, no entanto, continuar as políticas de direitos sociais esquerdistas... Falta de substância!
A derrota dos Tories consiste precisamente na não afinidade das várias perspectivas interiores do partido. Os liberais que tomaram conta do partido conservador nada têm a ver com o seu legado e com os princípios que o moldaram. São, aliás, os seus inimigos tradicionais e históricos, “whigs” provindos da dissolução/assimilação do Partido Liberal, opostos à tradicional posição comunitária-tradicionalista Tory.
A confusão emergente pode ser sintetizada na questão das liberdades e da tradição. Onde um conservador dirá que as liberdades vêm das tradições, um liberal dirá que a tradição a defender é a liberdade de escolha e a lei como mero subproduto dessas vontades individuais.
Esse é o combate perdido travado por Scruton e outros burkeanos. A percepção de que uma comunidade política precede a vontade dos seus membros, precede os seus direitos (sendo a própria base de sustentação dos mesmos) é o fulcro da questão, por ser esta a estrutura que enquadra moral e socialmente os indivíduos, ao invés da cultura de discórdia e desagregação cultivada pelo liberalismo.
Desta concepção emerge a candidatura de David Willets, de preocupação essencialmente comunitarista, que se propõe a um reforço das instituições e da sociedade civil inglesa. A proposta de Willets (condenada ao insucesso pelo esquema de apoios partidários e pelos infiltrados liberais) é uma proposta verdadeiramente conservadora. Pretende uma descentralização e destatização que não seja apenas uma desregulamentação ao estilo liberal, mas um regresso à comunidade e aos seus usos e costumes, que diminua as exigências sobre oEstado, aumentando a sua eficácia.
Infelizmente o conservadorismo inglês afastou-se da sua génese num ponto central. O conservadorismo foi inicialmente uma proposta moral de sociedade que pretendia fazer a apologia da tradição e da estrutura política e moral pré-revolucionária. No argumento conservador inglês contemporâneo não existe lugar para o bom, o belo, o sublime. Em larga medida o conservadorismo encontra-se nas mãos da perspectiva sociológica de Nisbet, em que a apologia da Ordem se encontra reduzida a um argumento sociológico definido pelo que funciona bem e mal em termos sociais.
Ao não entrar pela questão do bem e mal, ao reduzi-la a um aglomerado de “inputs” e “outputs”, o conservadorismo põe-se na moda dos sociologismos e das discussões sobre meios disfarçadas de reflexão essencial.
Ver a superfície dos problemas atacando as suas manifestações superficiais é uma luta condenada ao insucesso. Bem se poderia substituir a tocha por um extintor... e “apontar à fonte de ignição”, como bem ensina o manual de instruções!

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