sábado, fevereiro 19, 2005

Politeia

Os clássicos falam connosco. A reflexão aristotélica ecoa com maior acuidade que nunca. Num momento em que o “ser” e o “nada” são o mesmo, em que a destruição da filosofia é, mais que nunca, uma realidade, é fundamental regressar aos clássicos.
É evidente para quem conhece os clássicos que o rumo relativista que levamos é um mero desconhecimento dos clássicos, da ignorância dos seus pressupostos, da ignorância das premissas da existência da filosofia e da sua subordinação a lugares-comuns básicos sobre a inexistência de verdade, cuspidos com a mesma veemência de há 2400 anos atrás. Seria bom que todos esses relativistas, de modo a aclarar a discussão, se afirmassem de vez, ao lado de Górgias, ao lado dos sofistas, contra a tradição filosófica de Platão e Aristóteles.

O legado político de Aristóteles tem uma particularidade que originará toda um concepção fundamentadora e estruturante do pensamento político ocidental, a subordinação ao “bem comum”. É esta subordinação que reveste o pensamento ocidental de uma originalidade própria. Ao invés da filosofia oriental onde existe, por norma, uma mera obediência legalista (onde o horizonte do “dever” é a própria lei e não a justiça dessa mesma lei —aquilo a que os gregos consideravam ser a escravatura essencial e natural dos povos bárbaros— o que seria sinteticamente o que hoje apelidamos de “positivismo”, a obediência à lei pelo simples facto de esta ser lei.

Na sua estrutura das Formas de Governo, apresentada em “A Política”, Aristóteles apresenta essencialmente uma dicotomia entre formas rectas e formas degeneradas de governo[1]. Essa é a mais importante distinção entre as várias formas. Poder-se-ia dizer que a reflexão aristotélica apresenta esta dicotomia como sua própria inovação à “teoria das formas de governo”. A tipologia, que Aristóteles aproveita e dá importante destaque, da divisão tripartida (monarquia, aristocracia, democracia) já era referida por Heródoto na sua História, onde conta o episódio da discussão da sucessão Persa em que Otanes, Mecambises e Dário defendem cada qual, com sua respectiva argumentação, a sua forma de Governo.
Aristóteles estabelece como distinção essencial a subordinação ao Bem Comum.
É esse o factor diferencial entre monarquia e tirania, entre aristocracia e oligarquia, entre a politeia e a democracia.
É nesta última que nos deteremos com maior atenção, fruto dos “séculos do povo” que vivemos.

Existem na concepção aristotélica dois tipos essenciais de poder popular.
O poder popular, fundado no Demos, é na sua forma degenerada, a Democracia. Ela é por excelência o regime dos sofistas, onde a conquista de apoios é desligada do interesse de todos.
Um político que pretenda conquistar o Poder recorrerá à distribuição das honrarias e do erário de forma a maximizar os seus apoios, ignorando as necessidades públicas. O caso é evidente quando numa campanha não se apresentam propostas de resolução de problemas públicos, mas uma mera distribuição de dinheiro pelos que, com votos ou apoios, fazem ascender a facção à preponderância na cidade.
É esta a concepção denominada habitualmente de populismo, que se apoia nos desejos e apetites das “massas” para fins próprios, submetendo o domínio público ao domínio privado, sacrificando a causa de todos às causas de alguns.

Só os espíritos mais toldados ou néscios poderão negar que existem critérios que tornam possível distinguir a verdade da mentira neste campo. Alguém que prejudica a causa pública sob propósitos individuais é um demagogo e um traidor.
Imaginemos que o irascível inimigo Mongol se encontra na fronteira. Um rei que negociasse a escravatura do seu povo como forma de manter suas prerrogativas e aumentar os seus poderes sobre os indivíduos só poderá ser um traidor.
Isto demonstra que o Poder está sempre subordinado a concepções que são superiores a um mero mandato… que se funda no Bem do seu povo. Bem que, como bem se demonstra neste caso, é bastante superior à mera soma de opiniões dos membros da sociedade.

É por isso que Aristóteles toma a Politeia como um regime “mínimo virtuoso”. Um regime que encontra os seus princípios salvaguardados das paixões individuais. Por esse facto encontra a sua razão de ser no interesse comum da manutenção de princípios (uma constituição, escrita ou tácita), que podem ter uma boa ou má índole, mas em que a sua manutenção preserva o colectivo das tentações individualistas da facção.
Esta grande oposição perdurará até aos dias de hoje na dicotomia entre o ideal Republicano e o ideal Democrata.

O ideal Republicano centra a sua existência na estrutura institucional da comunidade. Centra-se nos princípios originários (constitucionais). O Republicanismo possui um conjunto de valores invioláveis que se constituem como a sua própria base. Pode ser, portanto, uma república fundada no progresso, numa religião, numa tradição cultural, num anseio de Poder, numa concepção de humanidade…
Ainda que uma república possa reinterpretar os seus princípios, não pode reinventar os seus princípios segundo a sua vontade. Essa é a sua maneira de ser e o que a distingue da outra forma de governo popular (a democracia). Encontra-se assim a salvo dos exploradores de desejos, dos sofistas, uma vez que as concepções gerais da sociedade estão cristalizadas, salvaguardando o Poder dos interesses particulares.

O contrário desta concepção é a visão democrática, que se destaca pela sua apologia voluntarista. Para a Democracia toda o Poder provém de um acto positivo de aceitação. Os fundamentos da sociedade são ditados pela vontade comum e são modificados segundo essa vontade. O Poder é assim nada mais que um argumento de Força (ou a força do Sofista que se traduz pela persuasão e a subordinação dos interesses do outro aos meus, o que constitui a própria base da tirania e da servilidade). Fundando-se no “apetitivo” e não no “racional” não se estabelece como um regime duradouro ou sequer coerente. Desta concepção absolutamente variável da lei resulta uma existência errática, uma lei que não apresenta fundamentos. Apenas a justificação de que o legislador assim o quis… A lei é assim instrumento de maiorias, afastando-se da concepção de justiça que a deveria presidir.

Desta parcialidade do Poder se parte para uma completa manipulação dos pressupostos da vida colectiva. Se alguns podem trocar a soberania nacional por uns cargos em Estrasburgo ou Bruxelas, porque não rever o documento fundamental? Se pretender manipular a constituição para obter hegemonia para a minha clientela, porque não o hei de fazer?
Não é difícil observar como o regime mais desprezível para os pensadores gregos é hoje tido como o grande marco da civilização ocidental…
Quem terá falhado?


[1] A escolha do termo “recto” não é inocente pois sintetiza bem a diferença entre “orthos” e “kakos”, aquilo que se submete, ou não, a uma ordem pré-estabelecida.

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