Liberalismo e SoberaniaNa sequência do estimulante debate decorrido nesta casa, o Rui Albuquerque apresentou um texto interessante sobre o Constitucionalismo anterior à Modernidade, em que é apresentada a relação entre o liberalismo e a soberania.
Até parece má-vontade, mas discordo frontalmente do texto do Rui Albuquerque.
O liberalismo pode ser uma doutrina de limitação do Poder, mas pode não o ser. Na obra de Rousseau, p.ex., a soberania popular é ilimitada. Não encontra limites ao soberano, porque o povo é o próprio soberano e porque só uma ordenação política que provenha da vontade (e não de uma justificação superior ou jusnaturalista) é válida. Pode o liberalismo sobreviver sem o legado rousseauniano? É evidente que sim, mas deixaria de se parecer com o liberalismo que temos hoje em dia e que postula, democraticamente, que o indivíduo enquanto membro da sociedade não é possuidor de direitos sobre a ordenação jurídica da sua comunidade. Ao deixar cair a “soberania popular” da sua teorização, o liberalismo teria de entrar em confronto com o dogma democrático do nosso tempo. Algo a que os nossos “politicamente incorrectos” liberais não podem aceder, sob pena de não poderem falar com os seus amigos socialistas.
Em segundo lugar e num plano mais teórico, a ideia de que o “primus inter pares” respresenta uma máxima política instituidora de qualquer medida de partilha de Poder entre o Rei e os súbditos é apenas uma interpretação liberal das posições da filosofia clássica. Tal não passava pela cabeça de qualquer soberano (já lá vamos) medieval. O “primus inter pares” é apenas a consagração titulada de uma mesma natureza entre governante e governados, que se consubtancia no Bem Comum. Não tivesse o Rei uma paridade natural e cristã de natureza com os súbditos e poderia governar da forma que entendesse e sem ter com eles a preocupação de zelar pelos seus interesses. Os grandes tiranos do Mundo Antigo, por exemplo, governavam como semi-deuses, afirmando-se únicos detentores da capacidade de determinar o que era o bem e a moralidade, achando-se no direito de governar contra os interesses do povo (que não coincidem com a sua Vontade), pela sua diferença de género. O mesmo se passou na Era Moderna, quando se justificou a governação de Hitler não em princípios morais ou na sua adequação a uma norma de benevolência externa, mas na expressão de um Génio Racial e Nacional que seria incompreensível para todos menos para o Intérprete da Vontade.
O Rei medieval governava os súbditos e tinha, em quase todos os casos, um Poder incontestado, mas estruturado por um conjunto de princípios morais e políticos que lhes eram externos, por antecedência a Constituição, por superioridade a Fé Cristã.
Isto leva-nos à questão da Soberania. Se é certo que o termo já existia, é claro que a soberania de Bodin diverge bastante da ideia de Beaumanoir num pressuposto básico. Na teoria medieval não existe Soberania, porque toda a constituição de uma estrutura de auto-governo parte do pressuposta da comunidade no seio espiritual da Igreja. O auto-governo só é lícito quando parte da autoridade espiritual da Igreja. Isto não quer dizer que não se organize da forma que entenda, mas que essa ordenação deve ser realizada, para ser lícita, sem contrariar os pressupostos cristãos de que a Igreja é destinatária. Daí a importância do reconhecimento da vassalagem directa do Papa para a formação de um Reino.
A formulação de Bodin é bastante diferente da medieval, por considerar que cada unidade política tem o direito intrínseco de se ordenar da forma que o soberano bem entender. Se o soberano decidir por um Estado que vá contra a moral, ou se o soberano achar que tem poder para decidir o que é a moral e a verdade, está no seu direito e não existe qualquer forma de a contrariar. Em Bodin a religião do príncipe (o tal primeiro entre iguais, aqui também) determina a religião do Povo. Este é o princípio ordenador do sistema de Estados Vestefaliano, que controlou os conflitos religiosos europeus, mas que os transformou em guerras civis permanentes e que justificou os absolutismos régios que geraram tantos liberalismos.
Os liberalismos descendem desta ideia de que as populações (agora tornadas soberanas), podem por seu justo título, dispôr da possibilidade de se auto-constituírem sem apelo ou ligação a um princípio que seja mais elevado do que o próprio. Não são limitadores da soberania, mas defensores da sua própria soberania.
Neste caso não é apenas a facção rousseauniana do liberalismo que incorre nesse erro, mas o próprio constitucionalismo britânico de “oitocentos”, ao elaborar interpretações da constituição britânica onde estavam incluídos esses direitos de auto-determinação moral do povo, que iam ao auge de ver doutrina eclesiástica “passada” pelo Parlamento.
A análise do idílio liberal britânico fica para outro dia, que virá breve.